domingo, 27 de outubro de 2013

As funções exercidas pelo Delegado e sua (re) colocação frente a proposta de polícia unificada


Autor: Thiago Frederico de Souza Costa - Delegado de Polícia
As funções exercidas pelo delegado de polícia no Brasil e sua (re) colocação frente a proposta de polícia unificada com carreira única.

Com o advento das discussões acerca da desmilitarização da Polícia Militar, muito se tem falado sobre unificação das instituições Polícia Militar e Polícia Civil, ao mesmo tempo em que se tem defendido a unificação de todas as carreiras policiais, criando-se o que se denominou carreira única ou “carreirão”.
 
Parece evidente que há nessa proposta uma dupla intenção, muito bem articulada, uma partindo de algumas carreiras policiais com a pretensão de alcançar o protagonismo hoje exercido pelas autoridades policiais, e outra de origem externa e articulada com a primeira.
 
Essa estratégia é muito bem elaborada, pois é elementar que na formação de uma carreira única um praça da Polícia Militar ou um agente da Polícia Civil não poderiam exercer as funções do delegado de polícia, o que rechaçaria de imediato tal ideia.
 
Por isso, percebe-se claramente a estratégia de subtrair as funções jurídicas e privativas de que o delegado de polícia está investido, repassando-as a outra instituição com o fito de realizar a direção das investigações criminais, postura que demonstra o plano arquitetado de primeiro enfraquecer para em seguida viabilizar a absorção da carreira de delegado de polícia pelo carreirão, acabando praticamente com  a carreira de delegado de polícia.
 
 
Tais pretensões não passam despercebidas, razão pela qual se impõe a busca pela resposta ao seguinte questionamento: unificadas as instituições policiais e criada uma carreira única, onde se posicionaria as funções jurídicas e exclusivas exercidas hoje pelo delegado de polícia?
 
Para responder a ele, impende buscar a origem de tão relevante função dentro do sistema de justiça criminal, de modo que se pode afirmar com tranquilidade que o delegado de polícia, por semelhança de nomenclatura e de atribuições, data do Império, tendo como marco normativo de relevo a Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, que tratava da reforma do Código de Processo Criminal.
 
 
À época, a função do então chefe de polícia, seus delegados e subdelegados era exercida por desembargadores e juízes, membros do Poder Judiciário, que já gozavam de prerrogativas como inamovibilidade – à época anamovibilidade –, possuindo, dentre várias atribuições previstas no art. 4º, a de que conceder fiança, expedir mandados de busca e apreensão e encaminhar as provas e esclarecimentos sobre delitos ao juiz responsável pelo julgamento; um modelo de persecução penal preliminar que se aproxima ao do juiz de instrução, adotado ainda em alguns países.
 
 
No que tange as Polícias Judiciárias – Polícia Federal e Polícia Civil – a despeito de todas as demais carreiras ou cargos existentes, o cargo de delegado de polícia é o único para o qual se exige graduação em Direito, requisito plenamente justificável na medida em que ele exerce uma função peculiar dentro do nosso sistema de persecução penal, como já exerceram alhures os magistrados.
 
Forte notar que o delegado de polícia possui natureza complexa ou dúplice, pois alia os aspectos: (i) formação jurídica prévia e (ii) formação técnica adquirida após ingresso no cargo.
 
Por tais características, o delegado de polícia não exerce apenas a mera função de chefe de uma equipe de investigação, um reducionismo exacerbado ao aspecto puramente técnico, porquanto o delegado de polícia se apresenta dentro do contexto da justiça criminal como verdadeiro agente político com o relevante e indeclinável encargo de decidir com base no direito posto, daí sua natureza também jurídica.
 
Sobre este viés da natureza jurídica e exclusiva de estado da função exercida pelo delegado de polícia, constata-se que compete a ele decidir sobre a lavratura da prisão em flagrante, formando a sua própria opinio delicti sobre os fatos no ato de indiciamento, com poder para determinar a prisão ou conceder liberdade ao preso e arbitrar fiança, podendo ainda determinar a apreensão e a restituição de bens relacionados ao crime, situações em que atua, tal como o juiz, com o poder de impor, com base na lei, restrições sobre bens e até mesmo sobre o status libertatis do cidadão.
 
Está o membro da carreira de delegado de polícia incumbido do relevante dever de resguardar direitos, sejam os da vítima, para preservá-la de males ainda maiores do que os já suportados, sejam os do infrator, para preservar sua integridade física e moral e lhe garantir o exercício de seus direitos constitucionais.
 
Até pouco tempo, o art. 531 do Código de Processo Penal estabelecia que o processo sumário das contravenções penais se iniciava pelo auto de prisão em flagrante ou por portaria do delegado de polícia, dotando-o de verdadeiras atribuições jurisdicionais, mas que fora revogado em 2008 pela Lei. Nº 11.719, não obstante tenha o delegado permanecido com o poder de representar ao Poder Judiciário pelas medidas cautelares necessárias à persecução penal.
 
Por essas razões, o modelo de persecução penal adotado no Brasil em sua fase preliminar muito se assemelha ao modelo de juízo de instrução ou de garantias, cabendo ao delegado de polícia as funções que cabem ao juiz na fase pré-processual, ressalvadas as hipóteses sujeitas à reserva de jurisdição, nas quais o delegado de polícia não possui competência autônoma para decidir, mas a tem para representar diretamente ao Poder Judiciário.
 
 
As atribuições do delegado, como se vê, não encontram semelhante no âmbito de todas as demais carreiras existentes em quaisquer instituições policiais, sendo-lhe exclusivas, razão pela qual as funções exercida pelo delegado de polícia dentro do sistema de persecução penal não podem ser absorvidas e integradas em um carreirão policial.
 
 
Ademais, cumpre anotar que em suas funções, o delegado de polícia é auxiliado por agentes e escrivães, que integram o rol de agentes da autoridade policial, com natureza auxiliar, de execução e de suporte às funções exercidas pelo delegado e com elas inconfundíveis.
 
Essas são as atribuições que dão conformação e natureza jurídica às funções exercidas pelo delegado de polícia, para as quais até mesmo o mais novo delegado de polícia está plenamente capacitado desde o ingresso no cargo, da mesma forma com que juízes e promotores estão aptos ao pleno exercício de suas funções desde a posse no cargo.
 
A par dessas funções, existem ainda as de natureza técnico policial exercidas  pelo delegado de polícia, o que dá a plena convicção de que ele exerce funções de natureza complexa – ou também denominada natureza dúplice.
 
Nesse diapasão, todos os delegados de polícia, antes ou logo que tomam posse no cargo, passam por um curso de formação nas academias de polícia, dotando-o assim o operador do direito também da capacidade técnica necessária para operar no âmbito técnico das investigações criminais.
 
 
Sob esse aspecto, e apenas neste, a formação dos demais cargos policiais converge em parte com a formação dos delegados de polícia, porquanto todos devem estar tecnicamente capacitados para a atividade policial, sendo notório que, ainda assim, há evidente distinções como o fato de que ainda em muitos Estados exige-se apenas nível médio para o ingresso nas carreiras subordinadas à de delegado de polícia, dando-nos a certeza de que as funções do delegado de polícia não se amoldam em uma carreira policial única.
 
 
Conclui-se que nessas razões residem os fundamentos da convicção de que a natureza do cargo de delegado de polícia, além de jurídica, como suas atribuições e requisitos de ingresso deixam evidente, é também técnica, no sentido de que também é preparado tal como todos os demais policiais com os conhecimentos específicos sobre investigação criminal e outras questões específicas imprescindíveis à função de polícia judiciária.
 
Aliás, nisso reside o fascínio que a carreira de delegado de polícia desperta, haja vista seu titular ser símbolo do próprio Estado, signo de respeito e da lei, com a legitimidade moral e legal para buscar a realização da justiça no âmbito do ramo do Direito que mais gravemente afeta os bens jurídicos mais valiosos.
 
Por esse destaque que exerce e que se faz premente a ressalva no sentido de registrar que, a despeito da relevância que possui dentro do sistema de justiça criminal, é evidente um movimento que busca desprestigiar o delegado de polícia, seja pelo discurso insistente de alguns insatisfeitos com a própria condição, seja pela cobiça de outras instituições em tomar para si o poder de presidir as investigações criminais.
 
 
Embora seja perceptível a união dessas duas frentes para enfraquecê-lo, uma só conclusão é irrefutável: ainda que se institua uma polícia única, com apenas uma carreira policial – a despeito da evidente impertinência de tal modelo –, a função do delegado de polícia jamais poderá ser absorvida pelo carreirão.
 
 
Isso porque se por alguma obra do imponderável a Polícia Militar, mesmo desmilitarizada, vier a se unir à Polícia Civil e todos os seus integrantes passarem a constituir uma só carreira, mais do que nunca será imperiosa a existência de uma carreira independente, de natureza jurídica, para o controle interno de legalidade dos atos policiais e de seus agentes, bem assim para garantia de que os direitos dos cidadãos serão resguardados, justificando com ainda mais razão as funções exercidas hoje pelo delegado de polícia de forma hierarquicamente superior e independente do carreirão.
 
 
Forte no exposto, a resposta ao questionamento inicial  passa necessariamente pela premissa inexorável da natureza jurídica complexa e inconfundível das funções privativas exercidas pelo delegado de polícia sob essa perspectiva dúplice, das quais não pode ser despojado, de modo que o debate político acerca da implantação um modelo de polícia única e de carreira única deverá decidir sobre a (re) colocação dessas funções exercidas pelo delegado de polícia frente à nova instituição policial sob alguma das três perspectivas possíveis:
 
1) Delegado de polícia integrante de carreira específica integrante da polícia, posicionada a par da carreira policial única  - esta composta por todos integrantes oriundos da Polícia Militar e Polícias Civis, exceto o delegado de polícia. A carreira de delegado de polícia no modelo de carreira única seria semelhante à carreira existente atualmente, incumbindo-lhe a direção da instituição policial, bem como a presidência ou a coordenação das funções de investigação criminal e de polícia judiciária. A execução dos atos de investigação criminal seria realizada pelos policias integrantes da carreira policial única, que poderiam formar equipes chefiadas por policiais mais experientes (comissário de polícia), todos sob o controle finalístico e hierárquico do delegado de polícia, que poderia determinar a correção de atos irregulares. Ao delegado de polícia caberia ainda a adoção das medidas judiciais necessárias, as representações pelas medidas cautelares ao Poder Judiciário e demais atos de natureza jurídica, ficando responsável também pelo controle interno de legalidade dos atos policiais, velando pela garantia dos direitos e da integridade física do preso ou investigado, pela lisura da prisão em flagrante e pela concessão de liberdade ao preso em flagrante, quando cabível a fiança ou quanto não estiverem presentes os motivos para decretação da prisão preventiva. O delegado, tal como ocorre hoje, atuaria de forma isenta e imparcial, como uma espécie de juiz de garantias,  com exceção das medidas sujeitas à reserva de jurisdição. O delegado agiria com a imprescindível independência funcional, sem subordinação hierárquica, para a consecução do interesse público na apuração do crime, gozando das mesmas garantias funcionais das demais carreiras jurídicas da magistratura e do Ministério Público, cada um exercendo parcela de poder sobre uma etapa de toda a persecução penal;
 
 
2) O delegado de polícia retornar à sua origem no Poder Judiciário, transformado em juiz de instrução ou juiz de garantias. Neste modelo, o delegado como juiz de garantias seria responsável pela interação direta com a polícia e com o Ministério Público, a quem seria transferida a supervisão dos atos investigativos relacionados a todos os crimes na fase de investigação, já que a instituição policial ficaria sem o membro da carreira jurídica internamente (delegado de polícia). O delegado (juiz de garantias) seria membro do Poder Judiciário, e teria a função exclusiva de atuar na fase de investigações criminais, com o mesmo tratamento funcional com relação a direitos, garantias e obrigações dos juízes de primeiro grau.
 
 
3) O delegado de polícia passa a integrar o Ministério Público, que ficaria responsável pela coordenação das investigações de todos os crimes. A polícia única de carreira única permaneceria subordinada ao Poder Executivo, tal como ocorre atualmente. O delegado de polícia passaria a ser integrante do Ministério Público. O modelo proposto atenderia o interesse do Ministério Público, pois lhe conferiria a atribuição de investigação criminal plena, tal como defendido durante a campanha contra a PEC37, que não é cabível no atual modelo em que já existe a carreira jurídica de delegado de polícia na Polícia Judiciária, o qual exerce a função de zelar pela legalidade e representar judicialmente pelas medidas judiciais necessárias as investigações. No modelo proposto de Ministério Público investigador a polícia de ciclo completo faria a investigação sob controle finalístico e de legalidade exercido por um membro do Ministério Público, onde estaria colocado o membro oriundo da carreira de delegado de polícia, a quem seria remetido o produto final das investigações. Por fim, nesse modelo um membro atuaria na fase de investigação e outro na processual, evitando-se que o mesmo membro atuasse nas duas fases, causa de impedimento prevista no Código de Processo Penal (art. 252, I e II, c/c art. 258, ambos do CPP).
 
 
Podemos concluir que independente do modelo, a questão da carreira de delegado de polícia está intrinsecamente ligada à função jurídica essencial exercida por ele, que poderá estar no âmbito da própria polícia (como ocorre hoje na Polícia Judiciária), no Poder Judiciário ou no Ministério Público, refletindo assim cada uma das três hipóteses aventadas acima.
 
Qualquer que seja o modelo, a função de presidir as investigações criminais e a atividade de polícia judiciária atrai para o delegado de polícia necessariamente a existência de independência funcional e as garantias de que são dotados magistrados e membros do Ministério Público, porquanto todos exercem parcela de poder sobre um todo, que é o complexo procedimento de persecução penal.
 
 
Por todo o exposto, conclui-se que o delegado de polícia é o titular de uma função indispensável e dele indissociável, ao mesmo tempo em que não pode ser absorvida pelo modelo de carreira policial única. Por isso, adotando-se este modelo, uma decisão política, atenta à imprescindibilidade da função, deverá concluir pela colocação do delegado de polícia como carreira específica dentro da própria instituição policial ou pela sua integração no âmbito do Poder Judiciário ou do Ministério Público, de acordo com o modelo que se pretenda adotar: do delegado de polícia como carreira independente na estrutura policial, como juiz de garantias ou como membro do Ministério Público investigador.
 
 
 
*Thiago Frederico de Souza Costa
Delegado de Polícia

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