É com certa
perplexidade que tenho acompanhado as manifestações contra a PEC 37, cunhada
por seus detratores como “PEC da Impunidade”. Não bastasse o maniqueísmo
embutido na campanha, que tenta opor “mocinhos” contra “vilões”, “bons” contra
“maus”, “bastiões do Estado de Direito” contra “corruptos”, dentre outros
epítetos que conduzem o debate para os subterrâneos da ética, a verdade é que
as discussões se distanciam cada vez mais do que efetivamente interessa: o
modelo de investigação criminal arquitetado pela Constituição de 1988.
Pois bem. Em
seu art. 144, a Constituição outorga exclusivamente à Polícia Judiciária a
função de realizar investigações criminais, não conferindo ao Ministério
Público semelhante atribuição. Leia-se o art. 129 da Constituição, que
estabelece as atribuições do Ministério Público, e nada poderá ser encontrado
conferindo ao órgão legitimidade para investigações criminais.
Apela-se,
então, a uma interpretação elástica, traduzida na seguinte indagação: Ao
atribuir ao Ministério Público a titularidade da ação penal, a Constituição não
lhe estaria conferindo, implicitamente, o poder de realizar investigações
criminais? A resposta é “não”. A investigação criminal é a mais drástica e
contundente investida das forças do Estado contra o cidadão. Num Estado que se
pretende de Direito, a legitimidade para investigações criminais deve estar
amparada em normas claras e explícitas, e não em interpretações vaporosas, etéreas,
que, na verdade, invertem o real sentido do texto constitucional.
O poder de
investigação criminal do Ministério Público não está escrito nem na
Constituição nem nas leis do país. Ele está amparado, acreditem!, numa
resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, a resolução 20/2007, cuja
constitucionalidade é atualmente questionada pela Ordem dos Advogado do Brasil
e pela Advocacia-Geral da União no Supremo Tribunal Federal.
É necessário
compreender, portanto, que a PEC 37 é, na verdade, uma bandeira da comunidade
jurídica, empunhada pela OAB, AGU e Delegados. Isso porque admitir que um órgão
público promova investigações criminais norteado na fragilidade de uma
resolução editada por ele próprio, de cuja elaboração o Poder Legislativo não
teve participação, pode significar, ainda que sob a aparente nobreza de
propósito do “combate à criminalidade” a qualquer custo, uma ameaça ao Estado
de Direito. Afinal, se hipoteticamente o CNJ resolver seguir o mesmo caminho e
instituir, mediante uma simples resolução, juizados de instrução, de modo a
permitir que magistrados também tenham sua parcela de poder investigatório, e
assim o fizessem outros e outros órgãos, os direitos e garantias individuais,
aos poucos, estariam sob ameaça de deterioração, sob os aplausos lenientes de
quem defende a máxima “quanto mais órgãos investigando, melhor”.
Argumenta-se,
ainda, que os membros do MP estariam menos propensos a desvios éticos na
condução de investigações criminais. A experiência, entretanto, não confirma a
assertiva. José Afonso da Silva, renomado constitucionalista brasileiro, em
contundente ataque ao poder investigatório do MP, lembra que “não se deve ter a
ilusão de que o desempenho, pelo Ministério Público, do papel que hoje cabe à
Polícia, manteria o Parquet imune aos mesmos riscos de arbitrariedade, abusos,
violência e contágio”, para, em seguida, citar o exemplo italiano, em que
procuradores que atuaram em investigações contra organizações mafiosas foram em
seguida presos por corrupção. Aliás, a realidade brasileira também oferece inú
meros exemplos de operações da Polícia Federal que tiveram como alvo membros do
Ministério Público, a exemplo da Operação Arcanjo, em Roraima, Operação Dominó,
em Rondônia, Operação Furacão, no Rio de Janeiro, dentre outras. Na realidade,
membros do Ministério Público gozam de uma “garantia” que se traduz, esta sim,
num inexplicável manto de impunidade, uma verdadeira jabuticaba jurídica: o
art. 18, parágrafo único, da Lei Complementar nº 75/93, segundo o qual o procurador,
quando comete crimes, só pode ser investigado pelo próprio Ministério Público!
Dessa forma, se
um membro do MP cometer abusos numa investigação criminal, não restará outra
alternativa à vítima: deverá apelar ao próprio Ministério Público e torcer para
que a investigação entre colegas seja isenta de tentações corporativistas.
É hora,
portanto, de desvencilhar o debate de apelos emocionais que escondem a verdade
sobre o sistema de persecução penal brasileiro. Um mito repetido à exaustão
pelos que rejeitam a PEC 37 é o de que em apenas três países do mundo o MP não
promove diretamente investigações criminais: Uganda, Quênia e Indonésia. Ora,
cabe indagar: Onde se pode encontrar essa pesquisa? Qual o rigor metodológico
de uma pesquisa de tal porte, que se propôs a investigar os sistemas de
investigação criminal dos 193 países do globo? Apenas para desmistificá-la,
cite-se o exemplo da Espanha, onde o Ministério Público não promove diretamente
investigações criminais, cabendo tal função à Polícia Judiciária.
Outro mito que
também precisa ser desmistificado: a PEC 37 seria uma reação às investigações
do caso mensalão, que teriam sido promovidas pelo Ministério Público Federal.
Nada mais inverídico. As investigações do caso mensalão foram realizadas no âmbito
do inquérito 2245 pela Polícia Federal, cabendo ao MP a requisição de
diligências quando entendeu necessário, o que, aliás, não seria afetado pela
PEC, que não retira do MP o poder de requisitar diligência no âmbito do
Inquérito Policial. A propósito, o próprio conselheiro do CNMP Luiz Moreira
Gomes Júnior, defendendo a legitimidade da PEC 37, disse recentemente que sua
aprovação não significa impunidade, uma vez que o MP continuará exercendo o
controle da atividade policial, e que a proposta não é fruto do desejo de
políticos corruptos em tolher os poderes do MP, mas resultado dos abusos que
existem dentro do próprio Ministério Público.
Finalizo,
portanto, reconhecendo, assim como o fez o eminente criminalista Luiz Flávio
Borges d’Urso, da OAB/SP, que a PEC 37 nada mais é que uma volta ao eixo
constitucional, e que não se está retirando o poder investigatório do MP, uma
vez que tal legitimidade nunca lhe foi dada pela Constituição Federal.
Por
Fabiano Emídio de Lucena – Diretor da Associação dos Delegados Federais da
Paraíba e Professor Universitário.
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