segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Violência nos estádios só acaba com investigação, diz antropólogo

 
 
THAIS BILENKY
DE SÃO PAULO
Depois de passar um ano na Inglaterra estudando o modelo de policiamento de estádios do país, o antropólogo carioca Marcos Alvito, 53, concluiu que o Brasil ainda tenta implantar o sistema de segurança que não funcionou nem sob a mão de ferro de Margaret Thatcher --primeira-ministra de 1979 a 90.
O cadastro de torcedores promovido pelo governo federal com o intuito de coibir a brutalidade que se viu em Joinville (SC), no último dia 8, durante o jogo entre Atlético-PR e Vasco, é, em sua opinião, exatamente o contrário do que se deveria fazer.
editoria de Arte / Folhapress
Tampouco adiantará aumentar efetivo policial em estádio se não houver investigação que colha provas capazes de tirar de circulação os torcedores que praticam violência, avalia o antropólogo.
Nesta entrevista feita por telefone, Alvito descreve o modelo inglês e traça um perfil das 500 torcidas organizadas do Brasil. O pós-doutorado na Universidade de Leicester, concluído durante o ano que passou na Inglaterra, teve como desdobramento o livro "A Rainha de Chuteiras", que será lançado em 2014.
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Folha - O que o Brasil pode aprender com o policiamento britânico nos estádios?
Marcos Alvito - A Inglaterra tentou primeiramente a solução que o Brasil ainda procura adotar: escoltar torcedores, encarando-os todos como violentos. Chegou a um ponto, na época da Margaret Thatcher, de pensar em cadastrar os torcedores.
Como o Ministério do Esporte propõe fazer no Brasil?
Exatamente. Mas lá até a bancada conservadora se levantou contra, e ela voltou atrás. Porque essa medida contraria o princípio básico da presunção de inocência. O cadastro criminaliza. Aqui já cadastraram 50 mil torcedores e mais de R$ 6 milhões foram gastos, e só interromperam por incompetência e corrupção, não pela percepção de quanto errado e desnecessário é.
Como evoluiu o modelo na Inglaterra?
A polícia continuou a tentar repreender com mais violência. Os estádios passaram a ser campos de concentração para torcedores enjaulados. Até a tragédia de 1989 [no estádio Hillsborough, em Sheffield, quando torcedores não conseguiram evacuar por conta das grades, e 96 morreram]. Hoje, como medida de segurança, não há grade entre a torcida e o campo, como no Maracanã, por exemplo.
Como a polícia inglesa age?
A polícia passou a adotar um sistema nacional de inteligência do futebol, com uma autoridade central que detém todos os dados sobre os torcedores, sabe quais são os perigosos que ainda não puderam ser incriminados. A polícia brasileira não tenta incriminar, enquanto a inglesa passa 24 horas por dia pensando em como tirar essas pessoas de circulação. E lá ela fiscaliza 92 clubes. Aqui são 30, 40 clubes importantes. Seria até mais fácil.
A polícia inglesa trata cada jogo como uma tragédia em potencial. Os estádios têm um corredor de ambulância para dar acesso ao hospital. O perímetro ao redor fica interditado. Existe um sistema de câmera com monitoramento de médico, polícia, bombeiro.
Uma estratégia mais preventiva que a brasileira.
A polícia aqui é preparada para o confronto. Ela prefere bater. Já ouvi de policiais que a orientação é "meter porrada". Pode parecer besteira, mas é fundamental o tratamento dado ao torcedor. Ele é tratado como um animal pelo sistema de transporte precário, pela estrutura dos estádios e pelo policial, que age com os nervos à flor da pele. Cria-se um ambiente de abandono. Aí chegam aqueles torcedores para os quais o futebol é o segundo esporte, o primeiro é a violência. O ambiente é perfeito, ficam superexcitados.
Como reverter o problema?
A medida mais emergencial é a investigação. Ela serve para dizer se o jogo é perigoso ou não. Porque o recurso policial é precioso. Sabendo o que tem que fazer com trabalho prévio, você estabelece um padrão de risco: médio, alto ou excepcional. E coloca o policiamento de acordo com isso. Na Inglaterra, a polícia manda o clube contratar determinada quantidade de policiais de folga e pagar hora extra. Não tem conversa.
Ajudaria se a PM aumentasse o efetivo nos estádios?
Esse evento que aconteceu em Joinville é uma exceção. A maior parte da violência não acontece dentro, mas fora do estádio, pela cidade inteira. Os torcedores saem dos seus bairros para ir ao estádio. E torcidas rivais podem se encontrar no ônibus, nas ruas. Você vai colocar policiamento na cidade toda? Não. Você tem que desmontar a torcida violenta. Se uma organizada diz ter 10 mil pessoas, você precisa identificar apenas quem comete atos violentos. São sempre os mesmos.
Que continuam brigando.
Sim, porque a polícia não consegue colher provas para denunciá-los. Não adianta falar que a Justiça não consegue prender se o policial não entrega provas. É simples. Se você tiver um bom informante numa organizada, ele te diz quem é, faz um filme com o celular. É muito fácil investigar. São crimes cometidos a céu aberto. Eu daria uma dica para a polícia. O cara tem 16 anos e está numa organizada, tudo bem. O cara tem 18 e está numa organizada, não tem problema. O cara tem 35 e está numa organizada, hum... Ele não virou pai de família, não tem trabalho... Ele é viciado em violência.
No Brasil não tem delação premiada para espião-torcedor. Não é o cassetete que vai resolver. Aí o promotor diz que vai fazer delegacia especial no estádio. Não precisa fazer lei nenhuma, não precisa gastar um centavo, não precisa de cadastro de torcedor. Só precisa aplicar a lei existente e prender. Não adianta ter estatuto para banir torcedor se não houver administração eficiente para checar quais torcedores banidos querem entrar no estádio.
Os clubes também precisam ser responsabilizados pela violência das organizadas?
Os clubes precisam ser duramente punidos, rebaixados. Principalmente o presidente, que paga ingresso, transporte, almoço e jantar para os torcedores que todo mundo sabe, e ele sabe muito bem, que estão indo para coisa pior que brigar, estão indo para matar. E mais. O presidente da federação que deixou acontecer um jogo explosivo em estádio onde não há separação de torcidas tem que ser punido. A CBF [Confederação Brasileira de Futebol] não organiza campeonato. A CBF é o gigolô do futebol, passa na boca do caixa e recebe dinheiro. Quem manda na tabela é a novela, e, quanto mais tarde o jogo, menos ônibus para o torcedor voltar para casa, mais bêbados na rua, maior o potencial de confronto. A CBF também tem que ser responsabilizada.
Como torcidas se organizam?
As torcidas são muito mal organizadas, salvo as de São Paulo. Mas basicamente elas têm um presidente que nem sempre é eleito, é um processo nebuloso, um vice-presidente e dois ou três diretores. A maioria tem uma liderança e subgrupos divididos por bairros que cada torcida chama de um jeito.
Os membros mais violentos representam quanto da torcida?
O batalhão de choque representa cerca de 3% do total, segundo estudo do [sociólogo] Mauricio Murad [autor de "Para Entender: A Violência no Futebol"]. São os que pensam 24 horas por dia em violência, exibem as cicatrizes como troféus. Contam rindo da violência que sofreram e que cometeram.
Como a torcida os vê?
São ídolos, porque aquele ato bárbaro, homicida, é demonstração de lealdade para eles. Ao mesmo tempo, são temidos porque, se esses caras não têm a rival para bater, eles batem na própria torcida. Conheci um torcedor, franzino, franzino, que só tinha visão em um olho. Perdeu a do outro em um confronto com a polícia. Mas continua brigando, mesmo correndo o risco de ficar cego. Você entende a profundidade disso? Que sociedade é essa que produz milhares de jovens que só veem sentido na violência.
Daniel Marenco/Folhapress
Marcos Alvito posa na biblioteca de sua residência, no Rio
Marcos Alvito posa na biblioteca de sua residência, no Rio
OUTRO LADO
Em nota, o Ministério do Esporte afirmou que não houve gasto com o "projeto piloto de cadastramento de torcedores utilizando o sistema biométrico nos termos originais do projeto Torcida Legal".
Segundo a pasta, "o convênio acordado foi cancelado a pedido do próprio conveniado, o Sindicato do Futebol. Desde então, o projeto sofreu mudanças em sua concepção e, atualmente, está sendo realizado o pré-cadastramento das torcidas organizadas. Nessa fase inicial de identificação, o ministério espera ter um levantamento da quantidade de torcidas organizadas e de membros" no país.
"O objetivo é promover a integração social das torcidas, como uma das formas de prevenção à violência e facilitar a interlocução com órgãos públicos e entidades de prática desportiva."
A CBF disse que não se manifestaria sobre as declarações do entrevistado.

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