Breve ensaio sobre a Lei
nº 12.830/13
A lei 12.830/13 serviu de reforço ao
sistema processual escolhido pelo legislador constituinte originário,
valorizando a figura do delegado de polícia.
O presente ensaio tem em mira discutir a Lei 12.830/13, que dispõe sobre a
investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
Vejamos o artigo 2º do novel mandamento
legal:
Art. 2º As funções de polícia
judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia
são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
O dispositivo transcrito supra deixa
claro o que já se podia extrair da análise da legislação processual penal
pátria: a natureza jurídica do cargo
de delegado de polícia. Se estudarmos o Código de Processo
Penal e as leis processuais penais extravagantes, perceberemos, sem maior
esforço, que o exercício do cargo de delegado de polícia demanda formação
jurídica. Só uma autoridade pública dotada de conhecimento jurídico terá
capacidade técnica para bem coligir elementos de prova compatíveis com a
legislação processual penal e com a Lei Maior, no curso de procedimento
inquisitivo.
Desde a instauração do inquérito policial
(seja por meio de portaria, seja pela confecção de auto de prisão em
flagrante), o delegado de polícia é demandado pela legislação processual penal
a usar de conhecimento jurídico. Ele deve tipificar condutas; conhecer acerca
da sua atribuição para apurar crimes – e consequente competência do juízo
criminal respectivo; dominar os direitos constitucionais do investigado, a fim
de respeitá-los de maneira irrestrita; saber sobre prescrição e demais causas
extintivas da punibilidade, com o fito de não instaurar procedimento natimorto,
dentre outros aspectos nitidamente jurídicos que gravitam em torno da
deflagração do procedimento inquisitivo.
No curso do inquérito policial, o
delegado de polícia determinará a materialização das diligências descritas de
maneira não exaustiva nos artigos 6º e 7º do CPP. A autoridade policial precisa
conhecer profundamente o título VII do CPP (da prova) e, ainda, o Direito
Constitucional (a prova precisa ser corretamente coligida, para que alhures não
seja tachada de ilegítima ou ilícita, redundando em impunidade). Neste
particular, é preciso deixar claro que é perfeitamente possível a condenação de acusado com base exclusivamente
em prova colhida no curso do inquérito policial, nos termos da parte final do
artigo 155 do CPP:
Art. 155. O juiz formará sua
convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial,
não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e
antecipadas
(grifo meu).
Para falar um pouco sobre provas
cautelares e não repetíveis (pedido de busca e apreensão, interceptação
telefônica/telemática, quebra de sigilo bancário/fiscal, etc.), é fantasioso
imaginar a confecção de uma representação de medida cautelar sem o domínio do
conhecimento jurídico. Essas provas (cautelares/não repetíveis) são importantes
armas postas à disposição da autoridade policial para elucidação de delitos e,
depois de submetidas ao contraditório diferido já no curso do processo, poderão
lastrear condenação criminal, nos moldes do artigo transcrito supra.
Ao fim do procedimento inquisitorial, o
delegado de polícia deverá confeccionar relatório final (peça que põe termo ao
inquérito). O relato deverá analisar as provas coletadas no curso do feito,
concluindo acerca da existência ou não de infração penal, sobre a
responsabilização ou não do investigado, dentre outros aspectos de natureza
nitidamente jurídica.
Continuemos. O § 1º do artigo
2º, da Lei 12.830/13 deixa claro que autoridade
policial sempre foi e sempre será sinônimo de delegado de polícia na legislação
pátria:
§ 1º Ao delegado de polícia,
na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por
meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como
objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das
infrações penais.
A legislação processual penal cita em
diversas oportunidades a expressão ‘autoridade policial’. O estudo, ainda que a
voo de pássaro, do arcabouço processual revela, sem necessidade de maior
esforço intelectivo, que tal designação se refere ao delegado de polícia de
carreira. Quem mais tem atribuição para instaurar inquérito policial e termo
circunstanciado? Quem mais pode representar ao judiciário pela decretação de
medida cautelar no bojo do procedimento inquisitivo que preside, no âmbito da
polícia judiciária? Ainda assim, o dispositivo em comento foi importante para
sepultar por completo, por exemplo, interpretações teratológicas e isoladas que
permitiam a instauração de termo circunstanciado pela PM ou pela PRF (termo
circunstanciado, em que pese ser apuratório simplificado, tem natureza jurídica
de procedimento investigativo, sendo por isso de atribuição da polícia
judiciária, sob a presidência de delegado de polícia).
O § 2º do artigo 2º da Lei
12.830/13 dá à autoridade policial ampla discricionariedade requisitória (veja
que a legislação não fala em mera solicitação, mas de verdadeira ordem). Por
óbvio, o descumprimento injustificado da requisição pode sujeitar o responsável
às penas previstas em lei. Vejamos o dispositivo:
§ 2º Durante a investigação
criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos
e dados que interessem à apuração dos fatos.
O § 4º, do mesmo artigo 2º é importante
garantia de que investigações não serão avocadas/redistribuídas ao bel prazer
de superiores hierárquicos da autoridade policial. Ao revés, a autoridade
superior só poderá avocar/redistribuir o feito nas hipóteses previstas no
dispositivo a seguir transcrito (se o fizer fora das hipóteses legais, o ato
pode tranquilamente ser corrigido pelo Judiciário, via mandado de segurança):
§ 4º O inquérito
policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser
avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho
fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância
dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a
eficácia da investigação.
O § 5º do artigo 2º é um marco. Em que
pese não ostentar a prerrogativa da inamovibilidade (ainda), o delegado de
polícia agora só pode ser removido por ato fundamentado (se a fundamentação for
mendaz ou insuficiente para justificar a remoção, o ato pode ser corrigido pelo
Judiciário, via mandado de segurança):
§ 5º A remoção do delegado de
polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
O § 6º do artigo 2º trata do
indiciamento (ato fundamentado, da lavra do delegado de polícia, que imputa
formalmente ao investigado o cometimento de determinada infração penal). O
indiciamento pode ser manejado por despacho ou no bojo do relatório final e
pode ser direto ou indireto (presencial ou não). Em qualquer caso, a autoridade
policial deverá deixar claro o porquê do ato, mediante análise pormenorizada
das provas coligidas no bojo do feito:
§ 6º O indiciamento, privativo
do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise
técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas
circunstâncias.
O artigo 3º da lei estudada deixa claro
que o cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito
(consequência ululante da natureza jurídica das suas funções) e que o
tratamento protocolar dispensado à autoridade policial é o mesmo recebido por
juízes, promotores, defensores públicos e advogados (uso do pronome de
tratamento ‘Vossa Excelência’, por exemplo):
Art. 3º O cargo de delegado de
polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo
tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria
Pública e do Ministério Público e os advogados.
A lei em comento trata, como visto, da
investigação criminal e serviu de reforço ao sistema processual escolhido pelo
legislador constituinte originário, valorizando a figura do delegado de polícia
(apuração inquisitiva tocada pela polícia judiciária, sob a presidência do
delegado de polícia, com clara divisão entre as funções estatais de investigar,
acusar e julgar, todas cometidas a órgãos distintos).
Foi um excelente passo, que precisa ser
acompanhado da modernização completa do aparelho policial. A população clama
por investigações mais céleres e mais efetivas, que só serão alcançadas com
maiores investimentos na polícia judiciária. Basicamente é preciso investir em
quatro eixos: a) melhor remuneração dos servidores; b) melhoria das estruturas
e dos equipamentos à disposição da polícia (prédios, armas, viaturas,
ferramentas, etc.); c) constante aperfeiçoamento dos policiais (oferta de
cursos e treinamento continuado); d) incremento do efetivo (realização
continuada de concursos públicos).
Alterações legislativas pontuais, como a
feita pela lei aqui estudada, e a modernização do aparelho policial, proposta
no parágrafo anterior, decerto contribuirão para conferir maior eficiência às
investigações (o que redundará em processos mais bem instruídos e menor
impunidade).
Márcio Alberto Gomes Silva
Delegado de Polícia Federal e Professor
da FACAPE - Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
SILVA, Márcio Alberto Gomes. Breve ensaio
sobre a Lei nº 12.830/13. Jus Navigandi,
Teresina, ano 18, n. 3687, 5 ago. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25083>. Acesso em: 6
ago. 2013.
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