Introdução
Tendo em vista a reforma do Código de Processo Penal trazida pela Lei 12.403/2011, que inovou ao estabelecer um rol de medidas cautelares diversas da prisão, o objetivo deste trabalho é analisar a conseqüência do descumprimento destas medidas.
Primeiramente, devemos destacar que o espírito da nova lei é valorizar o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, estabelecendo que a prisão preventiva deva ser decretada apenas em último caso, sempre que as demais medidas cautelares se mostrarem insuficientes e inadequadas para a garantia dos bens jurídicos previstos no artigo 282, inciso II, do Código de Processo Penal[1].
Isso não significa, todavia, que a sensação de impunidade irá aumentar a partir da reforma processual, principalmente porque a inovação legislativa veio para dar uma visão mais constitucional à persecução penal. O fato de uma pessoa aguardar o processo em liberdade não significa que ela ficará impune no momento da sentença final. Esse é o preço que pagamos por vivermos em um Estado Democrático de Direito, afinal, o direito de punir pertencente ao Estado só pode ser exercido por meio de um processo que legitime a aplicação da pena.
Assim, a decretação da prisão preventiva de uma pessoa configura-se como a medida extrema a ser adotada durante a persecutio criminis, o que não quer dizer que as hipóteses de sua utilização sejam raras. Muito pelo contrário, no dia a dia das Polícias Judiciárias são freqüentes os casos que demandam a adoção desta medida cautelar.
Em relação às medidas cautelares diversas da prisão, devemos destacar que elas ganharam um certo protagonismo na persecução penal com a nova Lei, devendo ser adotadas de modo preferencial. Contudo, para que a eficácia de tais medidas seja garantida, é preciso que haja um forte controle por parte dos órgãos responsáveis pela segurança pública, uma vez que o seu descumprimento pode causar um sério risco ao direito de punir do Estado e abalar a credibilidade da Justiça.
É justamente no intuito de fornecer elementos para garantir o cumprimento das medidas cautelares que elaboramos o presente estudo, dando um enfoque especial aos procedimentos de Polícia Judiciária.
Decretação de Medidas Cautelares Diversas da Prisão
Como é cediço, o artigo 282 do Código de Processo Penal deve respaldar a aplicação de toda e qualquer medida cautelar, inclusive a prisão preventiva. Podemos afirmar, assim, que o mencionado dispositivo legal funciona como uma cláusula geral dos procedimentos cautelares.
Desse modo, para que uma medida cautelar seja decretada o Juiz deve observar os critérios de necessidade e adequação[2]. Ademais, as cautelares não se aplicam às infrações a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade, nos termos do artigo 283, §1º, do CPP.
Uma vez decretada a medida cautelar diversa da prisão, era preciso que houvesse um dispositivo legal que garantisse a sua eficácia e observância. Nesse sentido, o §4°, do artigo 282, do CPP, determina que em caso de descumprimento da medida cautelar, o Juiz poderá substituí-la, impor outra em cumulação ou, em último caso, decretar a prisão preventiva.
Criou-se, então, a denominada prisão preventiva substitutiva ou subsidiária. Conforme demonstrado por nós em outro trabalho[3], essa espécie de prisão preventiva tem a função de garantir a execução das medidas cautelares diversas da prisão e não se submete aos limites expostos no artigo 313, do CPP, sendo adotada sempre que se constatar o descumprimento de medidas cautelares anteriormente decretadas.
Desse modo, com o respaldo legal que garante a eficácia das medidas cautelares diversas da prisão, é extremamente importante que os órgãos responsáveis pela persecução penal também se organizem no sentido de fiscalizar o seu fiel cumprimento. No próximo tópico abordaremos os procedimentos a serem adotados pelas Polícias Judiciárias enquanto órgão fiscalizador.
Descumprimento de Medidas Cautelares Diversas da Prisão e os Procedimentos de Polícia Judiciária
Com o objetivo de facilitar o entendimento do leitor, iniciaremos este tópico com um exemplo prático. Salientamos, contudo, que os procedimentos expostos neste estudo são baseados em nossas convicções pessoais, não configurando qualquer posição institucional.
Dito isso, imaginemos o caso de um indivíduo submetido a uma medida cautelar que o proíba de ter contato com determinada pessoa (art.319, inciso III do CPP). A adoção desta medida cautelar é muito útil nos casos que envolvem os crimes de ameaça e lesão corporal, já que a proibição de contato com a vítima é suficiente e adequada para garantir a persecução penal e evitar a reiteração de infrações.
Caso o sujeito passivo da medida cautelar a descumpra, o fato deve ser noticiado pela vítima por meio de um boletim de ocorrência. Incontinenti, a Autoridade de Polícia Judiciária deve ouvi-la em declarações e representar junto ao Poder Judiciário pela substituição da medida cautelar, sua cumulação com outra ou, em último caso, pela decretação da prisão preventiva, mesmo em se tratando de infrações de menor potencial ofensivo.
Vale consignar que, caso o fato seja apresentado na Delegacia de Polícia com a presença do sujeito passivo da medida cautelar, dependendo da situação, será possível, inclusive, a prisão em flagrante do indivíduo. De acordo com o nosso entendimento, aquele que descumpre uma medida cautelar comete o crime de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal.
E nem se fale que o mencionado crime não se caracterizaria em virtude de haver uma previsão de penalidade para o caso de descumprimento da medida cautelar, pois, nessas situações, há, na verdade, uma consequência processual decorrente da inobservância da medida decretada. Não se trata, portanto, de uma penalidade imposta pelo artigo 282, §4°, CPP. Na verdade, o descumprimento da medida cautelar apenas demonstra que ela não era a mais adequada ao caso, devendo, consequentemente, ser substituída e agravada.
Nesse contexto, em se tratando de descumprimento de medida cautelar decretada nas circunstâncias da Lei Maria da Penha, por exemplo, será possível a lavratura do auto de prisão em flagrante, haja vista que a referida Lei afasta os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95. Atente-se que, nessa situação, o Delegado de Polícia pode até deixar de conceder a fiança, caso entenda que estão presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva, nos termos do artigo 324, inciso IV do CPP.
Explicamos, o mencionado dispositivo legal determina que não será concedida fiança “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art.312)”. Vejam que a lei faz menção apenas ao artigo 312 do CPP. Desse modo, constatado o fumus comissi delicti (prova da existência do crime e indícios de autoria) e o periculum in libertatis (garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal etc..), a Autoridade Policial pode deixar de conceder a fiança.
Nesse exemplo salta aos olhos a natureza pré-cautelar da prisão em flagrante, que tem a função de levar ao conhecimento do Poder Judiciário a ocorrência de um crime, a prisão de uma pessoa e as circunstâncias dessa prisão, para que o Magistrado competente decida sobre qual a medida cautelar mais adequada ao caso.
Voltando aos exemplos práticos, imaginemos o caso de uma pessoa que esteja submetida à medida cautelar de proibição de freqüentar determinados lugares (art.319, inciso II do CPP). Caso ela seja surpreendida pela polícia nesses locais, ela deve ser imediatamente encaminhada à Delegacia de Polícia, onde será lavrado um Termo Circunstanciado pela violação ao artigo 330, do Código Penal. Demais disso, a Autoridade de Polícia Judiciária deve encaminhar todo o expediente ao Poder Judiciário por meio de ofício, representando pela decretação de outra medida cautelar se entender necessário.
O ideal seria que o Poder Judiciário mantivesse um plantão permanente para analisar e fiscalizar as medidas cautelares. Desse modo, aquele que fosse surpreendido descumprindo uma cautelar poderia ser imediatamente encaminhando ao Juiz de plantão, que decidiria sobre a medida mais adequada ao caso.
A título de sugestão, poderia se fazer com a pessoa surpreendida no descumprimento de medida cautelar, o que se faz com os menores infratores. O Delegado de Polícia, após finalizar os procedimentos de Polícia Judiciária, apresentaria a pessoa ao Juiz de plantão, que resolveria sobre o caso. Uma outra hipótese seria a assinatura de um termo de compromisso em que o sujeito se comprometesse a se apresentar ao Juiz competente no primeiro dia útil.
Sem embargo, para que a eficácia das medidas cautelares seja efetivamente garantida, é imprescindível que os órgãos responsáveis pela segurança pública se equipem com instrumentos que possibilitem a fiscalização do seu cumprimento. É preciso que se crie um banco de dados interligado entre o Poder Judiciário e as Polícias Civil, Federal e Militar, facilitando o cadastro e o acesso às pessoas submetidas a uma medida cautelar.
Outro ponto que merece destaque é a premente necessidade de aquisição de tornozeleiras eletrônicas por parte do Estado. Somente com esse equipamento o inciso IX, do artigo 319, do CPP, terá aplicação prática. Além disso, as tornozeleiras facilitariam a fiscalização de outras medidas cautelares.
Em conclusão, destacamos que a adoção das medidas cautelares diversas da prisão se apresenta como um marco evolutivo na persecução penal, fortificando o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade. Contudo, para garantir a eficácia dessas medidas é imprescindível que o Estado forneça os instrumentos necessários a sua fiscalização, sob pena de a nova Lei não conseguir consagrar os seus princípios norteadores.
[1]Art.282, § 6o do CPP: A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).”
[2] Art. 282: As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
[3] SANNINI NETO, Francisco. Espécies de prisão preventiva e a Lei nº 12.403/2011. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2946, 26 jul. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19635>.
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