quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Fiança arbitrada pela autoridade policial e a Lei Maria da Penha


Autor: Ronaldo Batista Pinto
 
A partir do advento da Lei nº 12.403/2011, que alterou substancialmente a disciplina da prisão preventiva e da liberdade provisória, esboça-se um entendimento no sentido de que, para os delitos a envolver violência doméstica, não poderia a autoridade policial arbitrar fiança, em ato que, por consequência, seria privativo de juiz de direito.
 
Nesse sentido os ensinamentos de Fausto Rodrigues de Lima (1) e Jorge Romey Auad Filho (2). Desse teor, ainda, o Enunciado nº 6 da Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica do Brasil (COPEVID), verbis: “Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, é vedada a concessão de fiança pela Autoridade Policial, considerando tratar-se de situação que autoriza a decretação da prisão preventiva nos termos do artigo 313, III, CPP”. 
 
O argumento principal desses respeitáveis entendimentos reside no fato de que, delitos perpetrados em contexto de violência doméstica, admitem a decretação da prisão preventiva, nos termos do inc. III, do art. 313 do Código Processual Penal, quando “o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo, ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência” (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). 
 
Sendo assim, por admitirem a prisão preventiva, a autoridade policial se veria impedida de arbitrar fiança, mesmo que ao delito seja cominada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos (art. 322 do CPP), desautorizada pela dicção do inc. IV, do art. 324 do CPP, que veda o favor legal “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva”.
 
Discordamos desse posicionamento. Pensamos que, a fim de avaliar a possibilidade da autoridade policial em arbitrar fiança se deva, em um primeiro momento, atentar à objetividade do art. 322 do CPP, isto é, se a pena máxima cominada ao delito não supera quatro anos. Adotado tal parâmetro, tem-se que o delito de lesões corporais leves (art. 129, caput, do CP), ainda que aumentada a pena nos termos do § 9º do mesmo dispositivo, admite a fiança a ser arbitrada pelo delegado de polícia. Também se permite a mercê em prol daquele que cometeu ameaça em um contexto de violência doméstica. Tomamos, assim, os dois crimes que, com mais frequência, afligem as mulheres em situação de vulnerabilidade.
 
Esse o primeiro dado a ser considerado. Em seguida, cumpre observar se, embora atendendo o critério objetivo, o agente não se acha inserido na hipótese que admite a prisão preventiva, do inc. III, do art. 313 do CPP. Aqui reside nossa divergência com o posicionamento inicialmente aludido.
 
Não basta, com efeito, que o delito envolva “violência doméstica e familiar contra a mulher” para que se admita a prisão preventiva, mas que, além disso, essa prisão se justifique “para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, na dicção da parte final do inc. III do art. 313 do CPP. 
 
É dizer, em reforço: o simples fato do crime ser praticado em contexto de violência doméstica, por si só, não impede a concessão da fiança pela autoridade policial. Haverá sim impedimento se, ademais, o delito for perpetrado quando, em favor da vítima, medidas protetivas de urgência tenham sido deferidas.
 
Não caberia ao intérprete, com a devida vênia, distinguir onde o legislador não distinguiu, sobretudo no trato de matéria a envolver a liberdade da pessoa.
 
Aliás, a se privilegiar tal entendimento, mas em conclusão que jamais foi cogitada, o furto simples perpetrado contra um idoso, a apropriação indébita tendo como vítima um enfermo, o delito de maus-tratos e de abandono de incapaz – para ficarmos com alguns exemplos – também não permitiriam o arbitramento da fiança pela autoridade policial, eis que, nos termos do inc. III, do art. 313 do Código de Processo Penal, admitiriam a prisão preventiva dada à condição subjetiva dos ofendidos. 
 
Nem vale argumentar com a gravidade do delito, posto que, delitos apenados de forma muito mais gravosa, como, por exemplo, o aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, do art. 124 do CP ou, ainda, o perigo de contágio de moléstia grave, previsto no art. 131 do mesmo códex, permitem ao delegado de polícia, face à pena máxima a ele cominada e no exercício de verdadeiro poder-dever, o arbitramento da fiança. 
 
Por último, quisesse o legislador, de fato, vedar a concessão da fiança pelo Delegado de Polícia, seguramente, o teria feito de maneira expressa na Lei Maria da Penha, incluindo dispositivo que impedisse esse favor legal. Foi assim que ele agiu, por exemplo, ao proibir a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar (art. 41), ou quando vedou a aplicação de pena de cesta básica (art. 17). Ora, um legislador que foi tão direto e objetivo em tais circunstâncias, não teria qualquer constrangimento em incluir, no texto legal, dispositivo que impedisse a concessão da fiança pela autoridade policial. Seu silêncio a respeito deve ser interpretado como nítida intenção de não proibir a concessão do benefício.
 
Concluímos, bem por isso, que; 1) à autoridade policial, como regra, cumpre arbitrar fiança em prol do autor preso em flagrante pela prática de um delito em situação de violência doméstica, desde que a pena máxima cominada não exceda a quatro anos e 2) esse direito do agente somente será negado (quando caberá, então, ao juiz de direito apreciar a questão), se ele, com sua ação, descumpriu medidas protetivas que, antes, foram deferidas em favor da vítima.
 
Notas:
 
1. Fiança policial, violência doméstica e a Lei nº 12.403/2011. Disponível em www.jus.com.br. Acesso em 02.06.2012.
 
2. A liberdade provisória na Lei Maria da Penha. Disponível em www.jus.com.br. Acesso em 30.05.2012.

 
Ronaldo Batista Pinto - Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista. Professor Universitário. Autor do livro “Violência Doméstica – Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo”. São Paulo: Editora RT, 3ª. ed., 2011 (em coautoria com Rogério Sanches Cunha).

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