domingo, 23 de dezembro de 2012

Delação “é coisa de canalha?”

 


LUIZ FLÁVIO GOMES, 55, doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG. Foi promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Estou no professorlfg.com.br



O ex-deputado Roberto Jefferson, que foi beneficiado pela delação premiada, ganhando o regime de semiaberto para o cumprimento da sua pena de sete anos e 14 dias, acaba de afirmar que delação recente do Marcos Valério (que está incriminando Lula) “é coisa de canalha”. Estando condenado a mais de 40 anos de prisão, estaria ele mentindo? Cabe ao procurador-geral da República investigar os fatos, porque uma delação, se não acompanhada ou confirmada por provas seguras, não possui nenhum valor jurídico.

Do ponto de vista moral a delação é extremamente questionada, porque ela premia a traição, que é abominada historicamente (Judas Iscariotes que o diga). Ocorre que o Estado não conta com boa capacidade para apurar os crimes, ficando na dependência (cada vez mais) da colaboração dos réus.



É bem provável que nenhum outro instituto jurídico tenha sido mais criticado em toda história normativa do nosso país que a delação premiada. Sua debutação, depois da CF de 1988, se deu no direito pátrio com a famigerada Lei 8.072/90, lei dos crimes hediondos, que veio permitir prêmio para quem colaborasse para o desmantelamento das quadrilhas de especial gravidade.

Tanto o mundo acadêmico como os integrantes da camada de cima (colarinhos brancos) abominaram a nova lei, por premiar a traição, ferir a ética e quebrar o modelo clássico de Justiça criminal, fundado na cartilha kantiana e hegeliana do direito penal retributivo (ao mal do crime o mal da pena, sem nenhum tipo de perdão ou equacionamento), que passou a conviver com a Justiça colaborativa.

Não há dúvida que a delação premiada pode dar ensejo a abusos ou incriminações gratuitas ou infundadas. O mais preocupante é que tudo isso vem a público imediatamente, porque o tempo da mídia (que explora dramaticamente a delação) não é o mesmo da Justiça.

Por tudo isso, nos anos 90 e começo do século XXI, a delação premiada virou uma espécie de Geni, do Chico Buarque: “Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!” No princípio, então, era só crítica.

Os anos foram se passando e o legislador acreditando nela cada vez mais, tanto que acabou sendo contemplada em vários textos legislativos: lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990) – antes mencionada, lei de proteção das vítimas e testemunhas (Lei 9.807/1999), lei do crime organizado (Lei 9.034/1995), lei de lavagem de capitais (Lei 9.613/1998 e 12.683/12), nova lei de drogas (Lei 11.343/2006 – idêntica à anterior) etc. Cada uma conta com suas peculiaridades, anomalias e deficiências. Hoje a delação permite desde a diminuição da pena até o perdão judicial.

Depois de todo mundo amaldiçoar a delação premiada, eis que nas nuvens flutuantes surge um Zepelim gigante, mais conhecido como direito penal, que pairou sobre os edifícios, com seus dois mil orifícios (canhões), voltados tanto para a criminalidade clássica dos marginalizados (underclass) como disruptivamente contra os criminosos poderosos, do colarinho branco (o caso mensalão isso evidencia)

A cidade apavorada se quedou paralisada, pronta pra virar geleia, quando seu comandante (poder punitivo estatal), depois de ter dito que tudo iria explodir, ao ver tanto horror e iniquidade (para muitos assim foi a dosimetria da pena no julgamento do mensalão), acabou mudando de ideia, oferecendo algo suavizante, para aquela população agonizante, constituída tanto de poderosos como de patuleia.

A Geni (delação premiada), de repente, passou a ser mais reverenciada que premio Nobel da Paz. No começo ninguém acreditava nisso, porque ela foi feita para apanhar, ela é boa de cuspir. Mas de fato, logo ela, tão coitada e tão singela, cativara primeiro o forasteiro (poder punitivo estatal), tão temido e poderoso, e, depois, o povo estupefato, impotente e temeroso.

De uma hora para outra a cidade em romaria foi beijar a sua mão. Prefeitos, bispos, banqueiros, políticos e marqueteiros, todos agora estão implorando pela Geni (pela delação), que está destinada a quem “presta grande serviço para a pátria” (como disse o Ministro Marco Aurélio). Não há nenhuma falta ética em o Estado premiar quem delatou outros criminosos, se afirma. Vai com eles, vai Geni, você pode nos salvar, você vai nos redimir, você dá pra qualquer um, bendita Geni!

O que era tão deplorável, de repente, está virando moda. Sinal dos tempos. São as novas tendências, depois de tantos debates. Luiz Henrique, o Macarrão, ganhou oito anos de perdão. Roberto Jefferson, do fechado foi parar no semiaberto, tudo em virtude dos relevantes serviços prestados à nação. O mais rumoroso caso de corrupção no momento, caso Rosemary, começou com uma delação. O primeiro condenado no caso da juíza Patrícia, no Rio de Janeiro, também foi beneficiado com a delação premiada. Marcos Valério agora também a quer em seu benefício.

Por mais que a delação seja um poço de bondade, a rainha dos detentos, namorada de tudo que é nego torto, seja do mangue ou do porto, o certo é que ela serve e dá pra qualquer um, seja poderosos ou lazarentos. Maldita Geni ou bendita Geni?

Nenhum comentário:

Postar um comentário