LUIZ FLÁVIO GOMES, 55, doutor em
direito penal, fundou a rede de ensino LFG. Foi promotor de justiça (de 1980 a
1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Estou no professorlfg.com.br
O ex-deputado Roberto Jefferson, que foi
beneficiado pela delação premiada, ganhando o regime de semiaberto para o
cumprimento da sua pena de sete anos e 14 dias, acaba de afirmar que delação
recente do Marcos Valério (que está incriminando Lula) “é coisa de canalha”.
Estando condenado a mais de 40 anos de prisão, estaria ele mentindo? Cabe ao
procurador-geral da República investigar os fatos, porque uma delação, se não
acompanhada ou confirmada por provas seguras, não possui nenhum valor
jurídico.
Do ponto de vista moral a delação é extremamente
questionada, porque ela premia a traição, que é abominada historicamente (Judas
Iscariotes que o diga). Ocorre que o Estado não conta com boa capacidade para
apurar os crimes, ficando na dependência (cada vez mais) da colaboração dos
réus.
É bem provável que nenhum outro instituto
jurídico tenha sido mais criticado em toda história normativa do nosso país que
a delação premiada. Sua debutação, depois da CF de 1988, se deu no direito
pátrio com a famigerada Lei 8.072/90, lei dos crimes hediondos, que veio
permitir prêmio para quem colaborasse para o desmantelamento das quadrilhas de
especial gravidade.
Tanto o mundo acadêmico como os integrantes da
camada de cima (colarinhos brancos) abominaram a nova lei, por premiar a
traição, ferir a ética e quebrar o modelo clássico de Justiça criminal, fundado
na cartilha kantiana e hegeliana do direito penal retributivo (ao mal do crime o
mal da pena, sem nenhum tipo de perdão ou equacionamento), que passou a conviver
com a Justiça colaborativa.
Não há dúvida que a delação premiada pode dar
ensejo a abusos ou incriminações gratuitas ou infundadas. O mais preocupante é
que tudo isso vem a público imediatamente, porque o tempo da mídia (que explora
dramaticamente a delação) não é o mesmo da Justiça.
Por tudo isso, nos anos 90 e começo do século
XXI, a delação premiada virou uma espécie de Geni, do Chico Buarque: “Joga pedra
na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela
dá pra qualquer um! Maldita Geni!” No princípio, então, era só crítica.
Os anos foram se passando e o legislador
acreditando nela cada vez mais, tanto que acabou sendo contemplada em vários
textos legislativos: lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990) – antes
mencionada, lei de proteção das vítimas e testemunhas (Lei 9.807/1999), lei do
crime organizado (Lei 9.034/1995), lei de lavagem de capitais (Lei 9.613/1998 e
12.683/12), nova lei de drogas (Lei 11.343/2006 – idêntica à anterior) etc. Cada
uma conta com suas peculiaridades, anomalias e deficiências. Hoje a delação
permite desde a diminuição da pena até o perdão judicial.
Depois de todo mundo amaldiçoar a delação
premiada, eis que nas nuvens flutuantes surge um Zepelim gigante, mais conhecido
como direito penal, que pairou sobre os edifícios, com seus dois mil orifícios
(canhões), voltados tanto para a criminalidade clássica dos marginalizados
(underclass) como disruptivamente contra os criminosos poderosos, do
colarinho branco (o caso mensalão isso evidencia)
A cidade apavorada se quedou paralisada, pronta
pra virar geleia, quando seu comandante (poder punitivo estatal), depois de ter
dito que tudo iria explodir, ao ver tanto horror e iniquidade (para muitos assim
foi a dosimetria da pena no julgamento do mensalão), acabou mudando de ideia,
oferecendo algo suavizante, para aquela população agonizante, constituída tanto
de poderosos como de patuleia.
A Geni (delação premiada), de repente, passou a
ser mais reverenciada que premio Nobel da Paz. No começo ninguém acreditava
nisso, porque ela foi feita para apanhar, ela é boa de cuspir. Mas de fato, logo
ela, tão coitada e tão singela, cativara primeiro o forasteiro (poder punitivo
estatal), tão temido e poderoso, e, depois, o povo estupefato, impotente e
temeroso.
De uma hora para outra a cidade em romaria foi
beijar a sua mão. Prefeitos, bispos, banqueiros, políticos e marqueteiros, todos
agora estão implorando pela Geni (pela delação), que está destinada a quem
“presta grande serviço para a pátria” (como disse o Ministro Marco Aurélio). Não
há nenhuma falta ética em o Estado premiar quem delatou outros criminosos, se
afirma. Vai com eles, vai Geni, você pode nos salvar, você vai nos redimir, você
dá pra qualquer um, bendita Geni!
O que era tão deplorável, de repente, está
virando moda. Sinal dos tempos. São as novas tendências, depois de tantos
debates. Luiz Henrique, o Macarrão, ganhou oito anos de perdão. Roberto
Jefferson, do fechado foi parar no semiaberto, tudo em virtude dos relevantes
serviços prestados à nação. O mais rumoroso caso de corrupção no momento, caso
Rosemary, começou com uma delação. O primeiro condenado no caso da juíza
Patrícia, no Rio de Janeiro, também foi beneficiado com a delação premiada.
Marcos Valério agora também a quer em seu benefício.
Por mais que a delação seja um poço de bondade, a
rainha dos detentos, namorada de tudo que é nego torto, seja do mangue ou do
porto, o certo é que ela serve e dá pra qualquer um, seja poderosos ou
lazarentos. Maldita Geni ou bendita Geni?
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