Lei nº 12.760/2012: a nova Lei Seca
Com a nova Lei Seca houve uma mudança
significativa no conteúdo do artigo 306 do CTB. Em linhas gerais, agora o
estado de embriaguez pode ser comprovado por diversos meios, tais como exames
de alcoolemia, vídeos, testemunhas ou outras provas admitidas pelo nosso
ordenamento jurídico.
Introdução
Entrou em vigor no dia 21 de dezembro
de 2012 a Lei 12.760/12, que vem sendo chamada pela imprensa como a nova Lei
Seca. Com a inovação legislativa, foi alterado, entre outras coisas, o
famigerado artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, que tipifica o crime de
embriaguez ao volante.
Antes da alteração, a embriaguez do
motorista só poderia ser constatada por meio do exame do etilômetro
(“bafômetro”) ou exame de sangue. Ocorre que tais provas dependiam
exclusivamente da colaboração da vítima. Assim, tendo em vista que a
Constituição da República e o Pacto de São José da Costa Rica garantem o
direito do indivíduo de não produzir provas contra si mesmo (princípio do nemo
tenetur se detegere), era muito difícil a comprovação da embriaguez.
Ainda de acordo com a antiga redação do
artigo 306, uma pessoa era considerada embriagada apenas quando constatada a
presença de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, o que também era
muito questionado pela doutrina, pois dificultava a punição de infratores.
Com a nova Lei Seca houve uma mudança
significativa no conteúdo do artigo 306 do CTB. Em linhas gerais, agora o
estado de embriaguez pode ser comprovado por diversos meios, tais como exames
de alcoolemia, vídeos, testemunhas ou outras provas admitidas pelo nosso
ordenamento jurídico.
Em nossa opinião, muito embora o novo
tipo penal não esteja livre de críticas, a alteração foi muito positiva, dando
efetividade ao Código de Trânsito e auxiliando na redução de acidentes. No ano
de 2012 foram inúmeros os casos de acidentes envolvendo motoristas com suspeita
de embriaguez, sendo que por uma questão de política criminal, alguns
operadores do Direito passaram a forçar o entendimento no sentido de aplicar o
denominado dolo eventual nessas situações. Esperamos que com a nova lei esse
quadro se modifique.
Feita essa breve introdução, passamos a
analisar a nova redação do artigo 306 do CTB.
Tipo Penal Objetivo
Para facilitar a compreensão do tema,
vale a transcrição do novo tipo penal, sendo vejamos:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor
com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de
outra substância psicoativa que determine dependência:
§ 1º As condutas previstas no caput
serão constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6
decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama
de álcool por litro de ar alveolar; ou
II - sinais que indiquem, na forma
disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
§ 2º A verificação do disposto neste
artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia,
vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos,
observado o direito à contraprova.
§ 3º O Contran disporá sobre a
equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de
caracterização do crime tipificado neste artigo.”
Com a nova redação dada pela Lei
12.760/2012, o crime de embriaguez ao volante se caracteriza quando restar
constatado que a capacidade psicomotora do motorista foi alterada em virtude do
álcool ou de outra substância psicoativa, como, por exemplo, “maconha” ou
“cocaína”.
Percebe-se, portanto, que a “alteração
da capacidade psicomotora” passa a ser elementar do tipo. Em outras palavras,
caso o motorista tenha ingerido bebidas alcoólicas, mas não esteja com a sua
capacidade psicomotora alterada, o crime não estará configurado.
Conforme destacado alhures, a grande
modificação trazida pela nova Lei está no fato de o tipo penal não mais
vincular a constatação da embriaguez, exclusivamente, ao percentual de seis
decigramas de álcool por litro de sangue, sendo este apenas um dos meios de
prova.
Na verdade, no inciso I, do §1°, do
artigo 306, há uma presunção por parte do legislador no sentido de que o
motorista flagrado na condução de veículo automotor com a concentração igual ou
superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a
0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar, esteja com a sua capacidade
psicomotora reduzida. Trata-se, nesse caso, de uma regra clara. Constatados os
mencionados índices, há uma presunção legal de embriaguez e o infrator poderá
ser preso em flagrante. Neste aspecto pode-se afirmar que se a ebriedade é
constada por meio do exame de etilômetro ou exame toxicológico de sangue nos
patamares legalmente estabelecidos, se está diante de um crime de perigo
abstrato.
Sob o aspecto administrativo, se for
constatada a concentração de álcool em níveis inferiores ao mencionado no
inciso I, não haverá presunção de embriaguez geradora de punição na seara penal.
Contudo, nos termos do artigo 276 do CTB, com a redação disposta pela nova Lei,
qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar
sujeita o motorista às penalidades previstas no artigo 165.
Voltando para o campo penal, ainda que
os números constantes no inciso I, do §1°, do artigo 306, não sejam
constatados, nada impede que a materialidade delitiva da conduta seja
comprovada por meio do exame clínico, que, aliás, é o mais indicado. Tal
conclusão é subsidiada pelo fato de que o elemento objetivo do tipo é a
verificação da alteração da capacidade psicomotora do motorista. Assim, se a
perícia apontar nesse sentido, o crime estará caracterizado independentemente
do resultado obtido pelo exame de etilômetro. Neste sentido é destacável que
entre os incisos I e II do artigo 306, CTB o legislador não utilizou a
conjunção aditiva “e”, mas sim a alternativa “ou”, demonstrando que a
comprovação da alteração da capacidade psicomotora pode dar-se pela constatação
dos graus de alcoolemia “ou” por meio de outros sinais.
No inciso II do mesmo dispositivo surge
o primeiro deslize do legislador. Considerando que o tipo determina que as
condutas do caput serão constatadas por “sinais que indiquem, na forma
disciplinada pelo CONTRAN, alteração na capacidade psicomotora”, muitos poderão
entender que estamos diante de uma norma penal em branco, o que, em última
análise, impediria a aplicação da nova Lei.
Com a devida vênia, o complemento a que
faz menção o dispositivo constitui apenas um plus ou um adendo aos outros meios
de constatação da embriaguez previstos no próprio tipo do artigo 306.
Isto, pois, no §2°, o legislador deixa
claro que a verificação da redução da capacidade psicomotora do motorista
poderá ser obtida mediante diversos meios de provas, tais como depoimento
testemunhal, exame clínico e até por vídeos. Por tudo isso, não concordarmos
que se trata de uma norma penal em branco. Além disso, para aqueles que não se
satisfaçam com essa explicação, é fato que está em vigor atualmente a Resolução
CONTRAN n. 206, de 20 de outubro de 2006, a qual nada mais faz do que repetir
as normativas já delineadas no atual § 2º., do artigo 306, CTB de acordo com a
nova redação dada pela Lei 12. 760/12. A verdade é que o recurso à Resolução do
CONTRAN é despiciendo mesmo. Isso porque quando se fala em prova penal, se está
tratando de matéria Processual Penal, cuja origem somente pode ser, por força
constitucional, lei ordinária federal. O CONTRAN não tem atribuição para
regular matéria de prova penal, não pode “legislar” sobre matéria processual
penal. Portanto, é de se concluir que o inciso II do artigo 306, CTB é
autoaplicável de acordo com as normas processuais penais referentes às provas,
sendo, como já afirmado acima, eventual Resolução do CONTRAN, mero adorno que
somente pode ter alguma maior utilidade no ramo administrativo. Seria mesmo
surreal imaginar o CONTRAN regulamentando prova pericial, prova testemunhal,
prova documental etc. na seara processual penal.
Em nosso entendimento, a regulamentação
a ser feita pelo CONTRAN teria como destinatários apenas os agentes de
trânsito, que se utilizariam deste ato normativo para decidir sobre a
necessidade ou não de encaminhamento do condutor do veículo até a Delegacia de
Polícia.
Nesse ponto, destacamos que, sem
embargo do disposto no §2°, do artigo 306, de acordo com o Código de Processo
Penal, sempre que a infração deixar vestígios, é indispensável a realização de
perícia. Desse modo, mesmo diante de uma prova testemunhal ou de um teste de
alcoolemia, é necessário o encaminhamento do suspeito ao Instituto Médico Legal
para a realização do exame clínico ou de sangue. Essa obrigatoriedade da prova
pericial nos chamados “crimes de fato permanente” (“delicta facti
permanentis”), somente pode ser superada muito excepcionalmente nos termos do
artigo 167, CPP, acaso a falta da perícia não se dê por desídia dos agentes
estatais, mas por obra do próprio infrator.
Diante desse novo quadro, parece-nos
que o exame clínico constituirá o principal meio de prova da embriaguez, haja
vista que o médico legista é o agente mais indicado para avaliar o estado do
investigado. Assim, testemunhas, vídeos e outros meios de prova seriam
utilizados apenas de maneira subsidiária, quando não for possível a realização
de perícia, de acordo com o já citado artigo 167, CPP ou mesmo como
coadjuvantes dos exames periciais mais adequados.
Com o objetivo de ilustrar essa
situação, imaginemos o caso em que o suspeito se recuse a colaborar com o exame
clínico ou não possa fazê-lo em virtude dos ferimentos causados por um
acidente. Em situações como esta, a prova pericial poderá ser substituída por
depoimento de testemunhas ou por vídeos. Também nada impede que sendo
realizadas as perícias, também se colham provas testemunhais, vídeos, fotos ,
objetos apreendidos etc. a fim de reforçar o arcabouço probatório.
Questão interessante e que
provavelmente repercutirá na doutrina, se refere à diferenciação feita pelo
legislador nos §§1° e 2º do artigo 306. No primeiro, a Lei diz que a
“constatação” da alteração da capacidade psicomotora do agente poderá ser feita
de algumas formas e no segundo o dispositivo usa o termo “verificação”.
Ao interpretar o tipo penal, não
podemos fechar os olhos para a mencionada distinção, feita, ao que nos parece,
de maneira propositada. Desse modo, entendemos que o termo “constatação” esta
vinculado a critérios objetivos, sem deixar margens para a valoração do
intérprete (v.g. exame de etilômetro). Por outro lado, o termo “verificação” é
mais fluído e permite uma análise subjetiva por parte dos operadores do Direito
(v.g. provas testemunhais, vídeos, exame clínico etc.). Aliás, essa distinção
serve, inclusive, como subsídio para o entendimento de que no inciso I,do §1°,
nós temos uma presunção legal da alteração da capacidade motora do condutor do
veículo.
Voltando para a análise do caput do
artigo 306, chamamos a atenção do leitor para uma outra modificação
significativa em relação ao texto anterior. Com a nova redação, foi retirada a
expressão conduzir veículo automotor “em via pública”. Isso significa que, a
partir de agora, o motorista que for flagrado dirigindo veículo automotor com a
capacidade psicomotora alterada, poderá ser preso em flagrante mesmo que tal
fato ocorra em uma área privada, como estacionamentos, condomínios, garagens
etc. Entretanto, essa questão ainda pode gerar alguma discussão doutrinário –
jurisprudencial na medida em que o artigo 1º., do Código de Trânsito Brasileiro
estabelece que ele regula “o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres
do território nacional, abertas à circulação” (grifo nosso). Ora, se o CTB se
aplica somente às vias “abertas à circulação”, isso significa que suas normas
seriam aplicáveis tão somente às vias públicas. Sabe-se que, por exemplo, se
pode conduzir um veículo automotor dentro de um sítio particular sem
necessidade de licenciamento ou CNH. Acontece que na parte penal há o argumento
de que quando o legislador quis estabelecer o alcance típico somente para as
vias públicas o fez. Enfim a discussão será certamente intensa, mas parece que
realmente houve uma abertura tipológica para as áreas privadas. Assumindo essa
postura da abertura do tipo para as vias privadas, ainda se migrará para outra
linha de discussão, agora mais profunda do que a simples interpretação
gramatical do texto. Trata-se de considerar se há lesividade a justificar a
tipificação criminal da condução sob efeito de álcool ou outras substâncias em
área privada. Haveria nessa situação perigo concreto ou mesmo abstrato a algum
bem jurídico a justificar a intervenção penal? Parece-nos que qualquer resposta
apriorística e generalizante será equivocada. Somente a análise detida do caso
concreto submetido à jurisdição poderá solucionar o problema. Pode haver caso em
que haja algum perigo, inclusive concreto e também pode haver outro caso em que
não se justifique a movimentação do aparato estatal criminal devido à ausência
de tutela de bens jurídicos postos em risco. Exemplificando: no primeiro caso
um indivíduo dirige embriagado um carro no quintal de sua casa muito espaçoso e
na presença de várias pessoas, inclusive crianças que participam de um
churrasco. No segundo, o sujeito está só num sítio afastado completamente de
qualquer contato social e guia seu carro nos limites da propriedade sem que
haja qualquer pessoa ou propriedade alheia correndo risco de dano. Assim sendo,
a conclusão é a de que a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma
em relação à condução ébria em locais privados será aferida na efetiva
aplicação da lei e não abstrata e genericamente falando.
Em tempo, é mister não olvidar que o
crime previsto no artigo 306 do CTB continua sendo de perigo abstrato, ao menos
em seu § 1º., inciso I, o que, segundo alguns entendimentos, fere o princípio
da ofensividade. Entendemos que o ideal seria que o legislador fizesse menção
ao perigo de dano na tipificação da conduta, o que estaria de acordo com
diversos conceitos modernos do crime, como a teoria de tipicidade conglobante,
por exemplo. Já no caso do inciso II do mesmo § 1º., do artigo 306, CTB, o
crime é de perigo concreto já que são exigidos “sinais que indiquem alteração
da capacidade psicomotora”.
Outra questão interessante diz respeito
à possibilidade de contraprova por parte do investigado. Seguindo uma tendência
iniciada pela Lei 12.403/2011, que alterou o Código de Processo Penal no ponto
que trata das prisões e medidas cautelares diversas, e que já havia introduzido
o contraditório mesmo durante a fase preliminar de investigação, a Lei 12.760/2012
também consignou uma previsão nesse sentido.
Previsões como estas demonstram uma
nova postura do legislador diante do investigado, não mais o tratando como
objeto de direito, mas, sim, como um sujeito de diretos. No mesmo diapasão, vem
ganhando força o princípio do contraditório na fase pré-processual ou de
Inquérito Policial, o que apenas reforça o conjunto probatório produzido nesta
fase e consagra o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, é dever da Autoridade
Policial atender as solicitações do investigado no momento de requisitar o
exame pericial. Mais do que isso, o sujeito passivo da investigação também
poderá submeter-se a um exame feito por perito particular, sendo que o
resultado do laudo será apreciado pelo Delegado de Polícia ou pelo Juiz no
momento da formação dos seus convencimentos.
É ainda interessante destacar que o §
3º., do artigo 306, CTB afirma que “o Contran disporá sobre a equivalência
entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime
tipificado neste artigo”. Essa normativa apresenta-se inútil: primeiro porque a
equivalência já é explicitada no artigo 306, § 1º., I, CTB pela própria lei,
segundo porque também já há o Decreto 6488, de 19 de junho de 2008 que indica
as mesmas equivalências ora expostas na lei.
Com relação à pena, destacamos que não
houve qualquer alteração (pena de 1 a 3 anos), sendo perfeitamente possível a
fixação de fiança pelo Delegado de Polícia, nos termos dos artigos 322 e
seguintes do Código de Processo Penal.
Oxalá a nova legislação tenha um
destino menos tumultuoso e truncado do que a anterior Lei 11.705/08, permitindo
um tratamento mais adequado e rigoroso com relação a todos aqueles que teimam
em misturar álcool, drogas e volante, colocando em risco a incolumidade
pública.
Autores
Delegado de Polícia
do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de
Direito. Professor de Direito Penal e Processual Penal da UNISAL de Lorena
(SP).
Delegado de Polícia
em Guaratinguetá (SP). Mestre em Direito Social. Pós-graduado com
especialização em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal,
Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na
graduação e na pós-graduação da Unisal.
nformações sobre o
texto
Como citar este texto
(NBR 6023:2002 ABNT):