terça-feira, 17 de julho de 2012

O direito do indiciado a uma investigação defensiva e contraditória no inquérito policial

por Marcelo Eduardo Freitas

RESUMO: O inquérito policial tem sido posto, às vezes de modo leviano, como uma “mera peça informativa”, quando na verdade não o é. Grande contingente de ações penais em curso no país fundou-se em inquéritos policiais, presididos por Delegados de Polícia de carreira. A inclusão das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, de forma mitigada, após o indiciamento (termo inicial), não conspira contra o êxito das investigações, ao contrário, assegura maior legitimidade às suas conclusões.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O inquérito Policial; 3. Defesa e Contraditório; 4. Conclusão.
PALAVRAS-CHAVE: Inquérito policial, Indiciamento, Termo Inicial, Contraditório, Ampla Defesa, Acusação, Delegado de Polícia, Estado, Constituição Federal.
“O envolvido jamais deve ser tratado como estranho, em procedimento preparatório ou preliminar. Afastá-lo, para obstar o exercício do direito de defesa, que não se confunde com o contraditório, quebranta a Constituição da República. Ocultar-lhe as intercorrências, durante o processo administrativo, impede a descoberta da verdade criminal atingível, a dano da sociedade e da ética administrativa”. (PITOMBO)
1 INTRODUÇÃO
A instituição policial brasileira, conforme documentação existente no Museu Nacional do Rio de Janeiro, data do ano de 1.530, quando da chegada de Martin Afonso de Souza enviado ao Brasil-Colônia por D. João III.
Somente com o Alvará Régio de 1.808, criou-se a Intendência Geral de Polícia, com a função de estabelecer diversas seções de serviço policial. Nasce, a partir daquele ato, o termo Polícia Judiciária. O inquérito policial, com tal denominação, surgiu na legislação pátria pela Lei n. 2.033 de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto-lei n. 4.824, de 28 de novembro de 1871. O texto legal definia no artigo 42, que: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito” (GUILHERME DE SOUZA NUCCI).
Vale ressaltar, já de início nesse estudo, que ao longo de toda a sua história, as organizações policiais no Brasil sempre estiveram voltadas para a proteção do Estado, contra a sociedade, em favor do Governo.
Farta documentação histórica demonstra que o processo de afastamento da polícia, com relação à sociedade, dá-se desde a fundação das organizações policiais.
Talvez seja por essa razão que hoje, passados exatos 200 anos da criação da Polícia Judiciária no Brasil, ainda soa estranho falar-se em garantias constitucionais dos investigados na fase do inquérito policial, especialmente contraditório, ampla defesa e presunção de inocência como se, nas palavras de RUI BARBOSA, “a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada.”
NORBERTO BOBBIO (1986, p.18), dizia que a democracia moderna só existe e se desenvolve onde os direitos de liberdade forem constitucionalmente reconhecidos. Para o autor, o Estado Liberal e o Estado Democrático são interdependentes, sendo necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais.
2 O INQUERITO POLICIAL
O inquérito policial, assim entendido em linhas gerais como o procedimento preparatório da ação penal, presidido por Delegado de Polícia de carreira (CF, art. 144, § 4o), que visa reunir elementos acerca de uma infração penal (materialidade e autoria), deve, portanto, seguir novos rumos, em consonância com as liberdades fundamentais, proclamadas por BOBBIO.
Nas poucas palavras aproveitáveis do garantista LUIGI FERRAJOLI: “para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes… que a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação”.
Vejamos:
O artigo 5o, LV da CF dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes“.
O inquérito policial está incluso, inexoravelmente, na expressão processo inserta no texto constitucional. Dúvidas não há, assim, de que o inquérito policial é um processo em sentido lato/amplo.
Ocorre que, como dizia JOSEPH GOEBBELS, ministro da propaganda Nazista de Adolf Hitler: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Vamos além: Não são necessárias mil vezes, desde que habilmente ditas como verídicas no momento oportuno.
É o caso: A construção em torno do inquérito policial sempre o tratou como uma “mera peça informativa” quando na verdade não o é. Sem receio de pecar pela falha da estatística, no mínimo, 90% das ações penais em curso embasaram-se em inquéritos policiais.
Nas palavras de MARTA SAAD, ao tratar da relevância de citado instituto, os elementos constantes do inquérito policial “não se cuidam de elementos destinados, apenas, a noticiar, ou informar, mas de elementos fadados a convencer. Informação difere do conhecimento sobre algo, ou alguém”.
E arremata:
“O inquérito policial traz elementos que não apenas informam, mas de fato instruem, convencem, tais como as declarações de vítimas, os depoimentos das testemunhas, as declarações dos acusados, a acareação, o reconhecimento, o conteúdo de determinados documentos juntados aos autos, as perícias em geral (exames, vistorias e avaliações), a identificação dactiloscópica, o estudo da vida pregressa, a reconstituição do crime. Assim, não é senão em conseqüência do inquérito que se conserva alguém preso em flagrante: que a prisão preventiva será decretada, em qualquer fase dele, mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da existência de crime e indícios suficientes da autoria, e como garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal; que à autoridade cumpre averiguar a vida pregressa do indiciado, resultando dessa providência, como é sabido, sensíveis repercussões na graduação da pena”.
3 DEFESA E CONTRADITÓRIO
No que concerne à defesa no inquérito, percebemos que a doutrina não tem gerado grandes controvérsias, embora o difícil seja torná-la aplicável no dia a dia das Delegacias de Polícias espalhadas por este vasto Brasil.
O problema reside, no entanto, na admissão do contraditório. Para alguns operadores jurídicos que lidam diariamente com a investigação criminal, a admissão do contraditório nesse procedimento significaria uma burocratização exacerbada da investigação criminal, pois o investigado faria jus às garantias do acusado em processo criminal. Entendemos de maneira diversa. È perfeitamente possível a aplicação do contraditório, de forma mitigada, na fase inquisitorial, como adiante se verá.
Em linhas gerais, o contraditório pode ser conceituado como a ciência bilateral dos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariedade, ou seja, permitindo a atuação das partes na formação da convicção do juiz. Não existe réu sem defensor, posto que no processo encontra-se em jogo um valor indisponível da parte – a liberdade.
De acordo com FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, em virtude do princípio do contraditório, “a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão ‘superpartes’, para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, dar a cada um o que é seu“.
A ampla defesa, por seu turno, é mais voltada para o réu. Ao réu é garantido todos os meio de defesa, com os recursos a ela inerentes.
Entendemos que o contraditório, após o indiciamento (termo inicial), não conspira contra o êxito das investigações, ao contrário, assegura maior legitimidade às suas conclusões. A par disso, a L. 10.792/2003, que introduziu significativas alterações na Lei de Execuções Penais e no CPP, transformou o interrogatório em ato, manifestamente, contraditório, exigindo a presença de advogado, constituído ou nomeado, ampliando e assegurando meios de defesa, posto que garante o direito de entrevista reservada do acusado/investigado com o advogado, ocasião em que poderá receber orientação técnica (art. 185, § 2º). Há a possibilidade de admitir, inclusive, perguntas do defensor quando da realização do ato (art. 188).
A adoção do princípio dá ao inquérito policial outra natureza, não de peça meramente informativa, como ainda apregoam alguns não tão bem intencionados, mas com valor probatório na instrução. Conseqüentemente, mais célere e mais rápida a prestação jurisdicional.
Como consectário da investigação defensiva, por outro lado, é urgente que a Autoridade Policial, como presidente da fase investigatória administrativa reservada à ação da polícia judiciária, preserve, no âmbito de suas atribuições, a garantia do devido processo legal, potencializando o uso da disposição garantista encerrada no artigo 14 do CPP, propiciando que nos autos do inquérito policial ingressem, também, os elementos de prova de interesse da defesa da pessoa sujeita à investigação ou indiciamento (do mesmo modo, termo inicial para referida garantia). É premente a necessidade de fortalecimento deste dispositivo legal a fim de se valorar um pouco mais o inquérito policial, em contraposição ao que estabelecido no CPP, art. 16, que permite ao órgão acusador a realização de novas diligências tendentes ao oferecimento da denúncia (EDSON LUIS BALDAN).
O Delegado de Polícia tem, portanto, no desenvolvimento de suas funções de Polícia Judiciária, inequívoco compromisso democrático, sendo que toda e qualquer atividade que realize deverá ter por meta o respeito às garantias dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Não produz prova para a acusação, mas em favor da sociedade que tem o sagrado direito de saber quem eventualmente infringiu a lei penal que ela mesma instituiu.
Ressalto que o próprio Supremo Tribunal Federal entende possível o cerceamento de defesa no inquérito policial. E vai além: Apregoa como legítima a atitude da Autoridade Policial em obviar inconvenientes que o conhecimento prévio da diligência pelo indiciado ou seu defensor possa acarretar ao procedimento investigatório. Isso nada mais é, em nossa ótica, do que a aplicação mitigada das garantias constitucionais em comento.
Lê-se (HC 82354, Rel. Min. Sepúlveda Pertence):
I. Habeas corpus: cabimento: cerceamento de defesa no inquérito policial. 1. O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente…
II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial… 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório…
Cabe ressaltar que o inquérito policial, além de propiciar conclusões sobre a inexistência de crime ou de que o investigado não foi o autor dos fatos, por exemplo, também é um meio de preparação para eventual ação penal. A investigação realizada nessa fase possui o fito de evitar a instauração de uma ação penal inútil, sem o respeito aos critérios de razoabilidade (leia-se proporcionalidade).
Assim, a análise dos pedidos de produção de provas pela defesa, nos termos do CPP, art. 14, acima visto, desde que legítimos, em nada prejudica o inquérito policial, sendo que a sua aceitação ou rejeição devem, indubitavelmente, serem feitas de forma motivada nos autos.
Sobre a motivação em hipóteses tais, cito a posição do insigne JOSÉ PEDRO ZACCARIOTTO, Delegado de Polícia Civil no Estado de São Paulo:
“O fundamento constitucional da obrigação de motivar está… implícito tanto no artigo 1º, inciso II, [da CF]que indica a cidadania como fundamento da República, quanto no parágrafo único desse preceptivo, segundo o qual todo poder emana do povo, como ainda no artigo 5º, XXXV, que assegura o direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito. É que o princípio da motivação é reclamado, quer como afirmação do direito político dos cidadãos ao esclarecimento do ‘porquê’ das ações de quem gere negócios que lhes dizem respeito, por serem titulares últimos do poder, quer como direito individual a não se sujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às que foram ajustadas às leis”.
4 CONCLUSÃO
Em linha de conclusão, a mudança no prisma da investigação criminal tem sido árdua, especialmente diante dos mecanismos ideológicos cada vez mais sofisticados e concentrados, insistentes em criar um mundo artificial, propositalmente encobridor do real.
A busca do real (verdade real ou verdade processual como preferem os processualistas modernos), as revelações das reais intenções, dos reais jogos de poder, torna-se uma tarefa revolucionária, pois somente quando as pessoas forem capazes e tiverem a coragem de buscar o real, poderemos efetivamente promover uma mudança permanente, em direção a um outro lugar, a um outro mundo possível e melhor (JOSÉ LUIS QUADROS DE MAGALHÃES).
Se a Polícia Judiciária conseguir apresentar ao órgão jurisdicional uma investigação calcada nas garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa somente a sociedade é quem ganhará. Isso, entretanto, não interessa à criminalidade organizada que ainda ocupa parcela considerável do poder estatal, uma de suas marcantes características.
O que não podemos, jamais, é retroceder no combate à essa mesma criminalidade organizada e obstar a discussão acerca da evolução de institutos cruciais ao aprimoramento do sistema de defesa do Estado, como é o caso do inquérito policial, pois aí será somente trevas. Nas palavras de JOHN STEINBECK, em O Inverno de Nossa Esperança, ”Quando uma luz se apaga é muito mais escuro do que se jamais houvesse brilhado”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARBOSA, Rui. Oração aos moços/O dever do advogado. Campinas: Russel Editores, 2004.
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FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2002.
FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir, tradução Raquel Ramalhete, 29ª ed, Petrópolis: Vozes, 2004.
GOMES, Luiz Flávio. CERVINI, Raul. Crime Organizado. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1997.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial, São Paulo: ERT, 2004.
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ZACCARIOTTO, José Pedro. A Portaria DGP18/98 e a Polícia Judiciária Democrática – Revista dos Tribunais, ano 88, novembro de 1.990 – Vol. 769.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1996.
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www.stf.gov.br – HC 82.354, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
Boletim do Instituto Manoel Pedro Pimentel, IMPP, edição n. 22, jun-jul-ago/2003, p. 3.
Marcelo Eduardo Freitas é Delegado de Polícia Federal e doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais.
Artigo originalmente publicado no site Jus Navigandi.

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