Lavagem
de capitais: o advogado se tornou delator do seu cliente?
LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
Depois de catorze
anos de vigência da lei anterior e de pouquíssimas condenações (o que revela a
ineficiência punitiva do Estado também nesse setor), por meio de um novo
diploma legal, marcado em vários aspectos pelo populismo penal, pretende-se dar
maior efetividade à apuração e punição do crime de lavagem de capitais. A nova
lei tem pontos positivos e negativos.
Um dos mais
preocupantes, desde logo, é o seguinte: todo cidadão tem direito à assistência
jurídica de um advogado, a quem ele confia muitas informações e documentos
sobre sua vida privada, seus relacionamentos e seus negócios, para a eficaz
defesa dos seus direitos e observância da justiça. Nos países democráticos e
civilizados, de outro lado, tudo que o advogado sabe em razão da sua profissão
deve ser mantido em sigilo (dever de sigilo, que não foi originalmente pensado
no advogado, sim, no próprio cliente).
Nossa vida pessoal
e social seria um caos se nosso advogado ou médico ou psicólogo, logo após
concluída a consulta, fizesse divulgação dos fatos e documentos a ele
confiados. Mais terrível seria se a lei dissesse que ele, de posse tudo,
delatasse o cliente para autoridades públicas, caso entendesse que alguma
operação fosse duvidosa. Quem se arriscaria procurar um advogado e confiar-lhe
sigilos e documentos se existisse a possibilidade de ele se transformar no seu
algoz delator?
Por mais
estapafúrdio que você possa achar esse cenário, saiba o seguinte: é
precisamente o que foi feito na nova lei de lavagem de capitais, que quer
obrigar o advogado, de posse de todas as suas informações e documentos, dados
em confiança, a “dedurar” você para o Coaf, sob ameaça de pesadíssima multa
(até 20 milhões), quando se vislumbra uma “operação suspeita”. O surrealismo
consiste em transformar todo escritório de advocacia em uma delegacia de
polícia e todo advogado em policial delator. O cliente, buscando assessoria
jurídica, confia tudo ao seu advogado e, em seguida, antes mesmo de chegar em
sua casa, está o advogado fazendo denúncia contra ele no Coaf.
O que está em pauta
é o dever de vigilância (e de informação). Esse dever, por força da precedente
Lei 9.613/98, já era imposto aos bancos, empresas de leasing, financeiras etc.
O advogado, agora, que é depositário da sua confiança, entrou nesse rol, ou
seja, de defensor do acusado, de prestador de serviços de consultoria,
assistência ou aconselhamento e de depositário do sigilo de tudo quanto lhe foi
confiado, ele passaria a ocupar o papel de “delator” (do seu cliente), perante os
órgãos públicos encarregados da investigação da lavagem de capitais no Brasil.
Nenhum país do
mundo, pelo que se sabe, quando o advogado funciona como defensor de um acusado
ou quanto atua como consultor jurídico, o obriga a quebrar o sigilo profissional,
que não foi inventado para ele, sim, para o cliente. Discussão existe quando
ele assessora uma transação comercial, bancária, imobiliária, financeira etc.
De acordo com nossa
opinião, em todas as hipóteses é preciso preservar o sigilo profissional, sendo
inconstitucional a determinação legal contemplada na nova lei de lavagem de
capitais (art. 9º, inc. XIV). Em nenhuma situação justifica fazer preponderar o
interesse da investigação relacionada com a lavagem de capitais (dever de
comunicação das operações suspeitas), que é coletivo, sobre o interesse, também
da sociedade, de preservação do segredo profissional do advogado. É que existem
outros meios para se fazer isso (e, talvez, até com mais eficiência).
Não existem
direitos absolutos (é bem verdade). O sigilo profissional do advogado não é
absoluto. Investigar o crime organizado no Brasil é tarefa impostergável. Mas
tem incidência aqui o princípio da proporcionalidade, especialmente no que
concerne aos seus subprincípios da necessidade e da proporcionalidade em
sentido estrito. Por força do primeiro (necessidade), toda intervenção nos
direitos fundamentais deve ser a mais benigna com o direito fundamental
afetado. Consoante o segundo, o custo da intromissão nos direitos fundamentais
deve ser sopesado com seus benefícios.
Fazendo-se
comparação entre a medida adotada pelo legislador (quebra do sigilo
profissional do advogado) e os outros meios alternativos (de investigação da
lavagem), nota-se que o Estado não dispõe de um, sim, de incontáveis outros
meios probatórios e recursos. Não é necessário chegar ao extremo de sacrificar
um direito coletivo tão relevante, como é o caso do segredo profissional do
advogado, para satisfazer outro interesse, também relevante, mas que gera um
custo exageradamente intenso para todos.
O Estado conta,
hoje, com muitos meios investigativos: dever de informação de inúmeros agentes
– tal como previsto no art. 9º da Lei 12.683/2012 -, Coaf, cruzamento de
informações bancárias, quebra do sigilo bancário, interceptação telefônica,
interceptação ambiental, rastreamento de bens tanto no País como fora, apoio da
receita federal etc. Se não houvesse nenhuma outra forma de apurar a infração,
a solução seria distinta.
Não é preciso
praticar atos antijurídicos para detectar capital de origem criminosa, que
sustenta atividades de narcotraficantes, terroristas, negociantes de armas,
autores de crimes contra a administração pública, contrabandistas e todos os
demais integrantes do crime organizado.
Se compararmos as
vantagens da intervenção legislativa adotada (comunicação de operações
suspeitas) com os sacrifícios do direito afetado, seja para os interessados,
seja para a sociedade, nota-se total desequilíbrio. Não vale a pena sacrificar
um direito quase que sagrado da sociedade para a tutela de outro bem relevante,
mas que não conta com a mesma estatura do primeiro (e, ademais, como já foi
dito, quando existem outros meios menos lesivos para se apurar o delito de
lavagem de capitais).
Essa nova norma
jurídica (art. 9º, inc. XIV), no que respeito ao advogado, de acordo com nossa
opinião, é também inconstitucional porque a violação ao dever de sigilo
profissional do advogado não devidamente justificada representa um atentado
contra as garantias constitucionais do cidadão e da sociedade.
A descoberta do
crime organizado e da lavagem de capitais é sumamente relevante para a
sociedade. Mas isso não pode ocorrer de forma arbitrária. Detectar o dinheiro
de origem criminosa é fundamental para acabarmos com a impunidade da
criminalidade organizada e da corrupção. Contudo, não podemos fazê-lo ao
arrepio da lei e da constituição (princípio da proporcionalidade), porque
estaríamos abrindo mão do Estado Democrático de Direito e fazendo preponderar o
Estado arbitrário, onde as liberdades e os direitos são relativizados em nome
de um “interesse maior” (vago e insustentável).
O advogado é
indispensável para a Administração da Justiça, seja quando ocupa o papel de
defensor, seja quando consultor, orientador ou assistente jurídico. Sua
inviolabilidade está contemplada no art. 7° da mesma Lei Federal (9.804/94).
Não pode prestar depoimento sobre aquilo que soube em razão do exercício da sua
profissão (art. 207 do CPP) e constitui crime a violação de segredo
profissional (154 do Código Penal).
O papel do advogado
no nosso sistema democrático de Direito vem delineado, em primeiro lugar, na
norma Constitucional do artigo 133 da CF/88, que estabelece ser ele
indispensável à administração da Justiça, inviolável por seus atos e
manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
O advogado tem o
dever de sigilo expressamente previsto em lei federal específica (artigo 81,
número 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados): “Não podem fazer prova em
juízo as declarações feitas pelo Advogado com violação do segredo profissional”.
Se o advogado fosse
obrigado a “denunciar” seu cliente, viveria a mais eloquente situação kafkiana:
“se violar o sigilo, praticará crime; se deixar de comunicar tais dados de seu
cliente ao Grande Irmão Controlador (que a tudo quer ver e que tem fome sem
fim), será multado em até R$ 20 milhões. O paradoxo é gritante!” (Guilherme O.
Batoquio).
*LFG – Jurista e
cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto
Avante Brasil e do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a
1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me nas
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