A problemática da fiança
Assim que houver a
comunicação da prisão em flagrante de algum indivíduo que não tenha prestado a
fiança arbitrada, deverá a autoridade policial fazer consignar tal situação no
ofício comunicador, informando que o preso manter-se-á recolhido na custódia
até que preste a fiança arbitrada ou até que sobrevenha ordem judicial em
sentido diverso.
Inicialmente,
gostaria de deixar consignado que a ideia para a elaboração do presente texto
surgiu em razão de dúvidas práticas ocorridas no dia a dia da autoridade
policial. Feito esse registro, passaremos a tecer algumas considerações sobre o
assunto
A concessão de fiança
é considerada um direito fundamental do indivíduo, vez que está diretamente
relacionada à liberdade (que a meu ver é o direito fundamental de maior
importância ao indivíduo) do mesmo. Ela vem prevista no art. 5.º de nossa
Constituição Federal e, como se pode notar de forma cristalina, a regra é a
afiançabilidade das infrações penais (tanto é assim, que tanto na
Constituição Federal quanto na Legislação Extravagante há a previsão das
hipóteses em que a fiança não é cabível – v.g.: incisos XLII a XLIV do art. 5.º
da C.F; e, arts. 323 e 324 do C.P.P.).
Conforme preceituado
por diversos doutrinadores renomados a fiança tem por finalidade assegurar a
liberdade provisória do indiciado ou réu, durante o transcurso da persecutio
criminis, desde que, preenchidas as condições impostas pela legislação.
Na mesma seara
constitucional, no dia 04/7/2011 entrou em vigor a Lei n.º 12.403/11 alterando,
de forma substancial, o regramento a respeito das prisões prevendo, inclusive,
um dispositivo com as denominadas “medidas cautelares diversas da prisão”.
Analisando a nova
lei, juntamente com o texto constitucional, denota-se que a intenção do legislador
é a de prever o enclausuramento do infrator somente em algumas situações.
Tanto é assim que a
Lei Ordinária ora em comento ampliou as hipóteses em que a autoridade policial,
quando da lavratura do auto de prisão em flagrante, possa arbitrar fiança, como
regra (aos delitos que isso não é possível há previsão legal expressa), para todo
e qualquer crime em que a pena máxima não ultrapasse 04 (quatro) anos (cf.
art. 322 do Código de Processo Penal)[1].
Ressalte-se,
entretanto, que o arbitramento da fiança, além de constituir um direito
subjetivo do suposto infrator, é um poder-dever da autoridade policial. Se essa
entender que no caso em concreto o indivíduo não fará jus à concessão da fiança
deverá fazê-la de forma motivada, dando ciência àquele.
É cediço que quando
da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante a autoridade policial deve ficar
atento, dentre outros, aos requisitos legais previstos no art. 302 do Código de
Processo Penal. Tais requisitos são de suma importância para a formalidade do
ato.
Após o término da
lavratura do auto em questão a autoridade policial deverá encaminhar cópia ao
Juiz competente para que o mesmo analise os requisitos formais e, ao final, homologue
ou relaxe a prisão.
Estando presentes
todos os requisitos legais o juiz deverá homologar o auto e adotar uma das
medidas previstas no atual art. 310 do Código de Processo Penal.
Por outro lado,
havendo qualquer ilegalidade o juiz deixará de homologar o auto de prisão e, se
for o caso[2], determinar a soltura do suposto infrator.
Da análise dos
dispositivos legais ora em comento, bem como os demais atinentes ao presente
assunto, verifica-se que, s.m.j., a concessão ou não de fiança não faz parte
dos requisitos legais a serem observados quando da lavratura do Auto de Prisão
em Flagrante. Portanto, nessa linha de raciocínio, não há que se falar em nulidade
do respectivo auto, caso a autoridade policial tenha se “esquecido” de
arbitrá-la. Destaque-se, inclusive, que não há nenhum impeditivo legal que
proíba o juiz de arbitrar a fiança de ofício, em casos assim, quando do
recebimento da cópia do Auto de Prisão em Flagrante.
Pois bem. Feitas
essas considerações, e tendo em vista as dificuldades encontradas no dia a dia
da atividade policial, algumas indagações poderão surgir. Senão, vejamos.
1. É preciso que o
juiz se manifeste, quando do recebimento do auto de prisão em flagrante, sobre
a fiança arbitrada?
2. Caso a autoridade
policial arbitre a fiança e o indiciado não a preste imediatamente, quanto
tempo poderá aguardar para recebê-la?
3. Após a homologação
judicial do auto de prisão em flagrante, quem deve receber o valor arbitrado
à guisa de fiança e, por consectário, liberar o preso afiançado: a
Autoridade Policial ou o Juízo competente por distribuição?
4. A liberação do
preso afiançado depende de alvará judicial de soltura?
Em que pesem
respeitáveis entendimentos em sentido contrário, tentarei responder a cada uma
dessas questões.
No tocante à pergunta
de número “1” entendo que não há necessidade de apreciação judicial, com
relação à fiança arbitrada, quando da homologação. Isso porque, conforme já
mencionado anteriormente, a meu ver, o arbitramento de fiança não é
requisito de validade do Auto de Prisão em Flagrante, sendo, portanto,
prescindível para a verificação de nulidade ou não do ato realizado pela
autoridade policial. Os requisitos de validade encontram-se insculpidos no art.
302 do Código de Processo Penal.
Superada a análise da
primeira indagação, passaremos agora às perguntas de número “2” e “3”.
A legislação pátria
preceitua apenas que a autoridade policial poderá conceder fiança nos casos de
infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 04
(quatro) anos (cf. art. 322 do C.P.P.). Contudo, nada diz nada a respeito de
qual o limite temporal máximo que ela poderá ser prestada (se é que isso
pode ser afirmado!).
Conforme já explanado
no começo do presente texto, a fiança é um instituto que tem por finalidade
assegurar ao indiciado (ou réu) o direito de aguardar seu julgamento em
liberdade, estando diretamente relacionada ao direito de liberdade do indivíduo
(o qual é considerado um direito fundamental – é cláusula pétrea).
Uma vez reconhecido
seu cabimento e preenchidos os pressupostos legais, a autoridade responsável
pelo seu arbitramento, s.m.j., deverá concedê-la, sob pena de abuso de
autoridade.
Ora, uma vez
arbitrada a fiança já houve o reconhecimento, por parte da autoridade (policial
ou judiciária), de que o indivíduo faz jus a sua liberdade (ainda que
condicionada), não sendo crível fixar um prazo máximo para que ela seja
prestada!
Por se tratar de um
direito fundamental, não é admissível tolher a liberdade de um indivíduo
porque, p.ex., não tinha dinheiro (ou outro bem de valor econômico) para
prestar a fiança que lhe foi inicialmente arbitrada. Raciocínio contrário a
esse poderia configurar uma aberração jurídica: como é possível a autoridade
policial reconhecer inicialmente um direito e depois (por falta de previsão
legal) negá-lo? Se isso for feito, o indivíduo que se encontra
encarcerado poderá impetrar, p.ex., habeas corpus em razão de estar sofrendo um
cerceamento de sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder.
Portanto, entendo
que, uma vez arbitrada a fiança no bojo do Auto de Prisão em Flagrante, a autoridade
policial deverá recebê-la a qualquer momento, sob pena de ferir uma
cláusula pétrea (desde que, é claro, não haja decisão judicial anterior em
sentido contrário – p.ex.: determinando a soltura do preso independentemente da
prestação da fiança). Uma vez arbitrada a fiança pela autoridade policial, não
será necessário que o beneficiado dirija-se ao Poder Judiciário para ver
reconhecido seu direito (salvo no caso de violação desse).
Por fim, faz-se
necessário tecer algumas considerações a respeito da última indagação (questão
“4”). Pelas razões expostas anteriormente, especialmente pelo fato de entender
que a autoridade policial que arbitrou a fiança é a responsável pelo seu
recolhimento (a qualquer tempo e desde que não haja decisão judicial em sentido
contrário), entendo que não é necessária a expedição de alvará de soltura
para colocar em liberdade o preso que veio a prestá-la. Se assim fosse, a
autoridade policial estaria negando eficácia a um direito inicialmente
reconhecido.
Vejamos um exemplo
real: o cidadão foi preso em flagrante por um delito “X”, sendo que ao final do
respectivo auto a autoridade policial arbitrou fiança. Por alguma razão o preso
não teve condições de prestar a caução ao término do ato. Passados alguns dias
o advogado do preso (ou terceira pessoa) comparece até a Delegacia de Polícia para
prestar o valor arbitrado, sendo que o Delegado afirma que não poderá recolher,
pois o preso não está mais sob sua custódia e sim do juiz que homologou o
feito. Dirigindo-se até ao Fórum o juiz responsável diz que a fiança foi
arbitrada pelo Delegado de Polícia e é ele quem deverá recebê-la. Ato contínuo
o advogado volta até a Delegacia e explica a situação, sendo que o Delegado de
Polícia aceita em receber a fiança.
Aos que sustentam a
necessidade de alvará de soltura, além de recolher a fiança arbitrada, deverá o
advogado peticionar ao juiz e solicitar a expedição do respectivo alvará de
soltura. Ora, se o próprio magistrado, nesse caso mencionado, afirmou que a
responsabilidade é do Delegado de Polícia, como afirmar que é imprescindível a
expedição de alvará judicial para colocar o preso em liberdade? A meu ver, é um
contrasenso à legislação pátria.
Ressalte-se que, a
alegação de que a partir do momento em que o Delegado de Polícia termina a
lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, e comunica ao juízo competente,
ocorrerá consumação terminativa (não sendo mais o preso de sua
responsabilidade), também não deve prosperar.
Se admitirmos a tese
ventilada no parágrafo anterior, poderíamos chegar ao seguinte absurdo: ao
término da lavratura do auto de prisão em flagrante, onde foi arbitrada fiança,
o preso diz que não dispõe de condições, no momento, para prestá-la. O Delegado
de Polícia, então, mantém o cidadão encarcerado e comunica ao juiz. Entretanto,
15 (quinze) minutos após o envio dos autos à Justiça, comparece um parente do
preso para prestar a fiança. Ora, adotando referido raciocínio, o Delegado de
Polícia não poderia mais receber a fiança – nessa hipótese, negaria um direito
inicialmente reconhecido pela própria autoridade policial!
Conquanto as explanações
feitas acima, imperiosa a adoção de algumas medidas práticas. A uma, assim que
houver a comunicação da prisão em flagrante de algum indivíduo que não tenha
prestado a fiança arbitrada, deverá a autoridade policial fazer consignar tal
situação no ofício comunicador, informando que o “preso manter-se-á recolhido
na custódia até que preste a fiança arbitrada ou até que sobrevenha ordem
judicial em sentido diverso”. A duas, assim que a fiança for prestada a
autoridade policial deverá adotar duas medidas: i) colocar o preso
imediatamente em liberdade; e, ii) comunicar imediatamente ao Juízo competente
a respeito da prestação da fiança e da soltura do preso.
Feitas essas
ponderações espero que isso possa contribuir, de uma forma ou de outra, aos
demais colegas que atuam no meio jurídico no desempenho de suas atribuições
diárias.
Notas
[1] Pela regra antiga a
autoridade policial somente podia conceder fiança nas infrações penais apenadas
com detenção ou prisão simples.
[2] Conquanto a prisão
em flagrante possa ter alguma ilegalidade (o que ensejará seu relaxamento),
pode ocorrer de o juiz entender que houve infração penal praticada pelo sujeito
inicialmente preso e decretar, de ofício, a prisão preventiva desse.
Autor
·
Rodrigo Perin Nardi
Delegado de Polícia Federal Pós graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo Ministrou aulas de Direito Penal e Processual Penal no Curso DUCTOR (Campinas) - Preparatório para concursos públicos, durante dois anos. MInistrou, ainda, aulas de Direito Constitucional por um ano e meio no curso de graduação da Universidade Dinâmica das Cataratas - Foz do Iguaçu. Por dois anos ministrou aulas de Direito Constitucional e Penal no Curso VITÓRIA, em Foz do Iguaçu.
Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
NARDI, Rodrigo Perin. A
problemática da fiança. Jus
Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3316, 30jul. 2012 .
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22307>. Acesso em: 30 jul. 2012.
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