quarta-feira, 18 de julho de 2012

DIREITO PENAL DO INIMIGO E LEI DOS CRIMES HEDIONDOS


DIREITO PENAL DO INIMIGO E LEI DOS CRIMES HEDIONDOS



O presente artigo tem como objetivo analisar a relação da teoria do direito penal do inimigo, a lei dos crimes hediondos, e os princípios constitucionais de um Estado Democrático de Direito, dos direitos e garantias individuais dos cidadãos.

A forma de punição excessiva de determinados comportamentos contrários ao ordenamento jurídico, considerados pelo grau de periculosidade do agente, determinando o indivíduo como um verdadeiro inimigo do Estado, contraria um dos mais importantes princípios do Direito Penal, o princípio da reserva legal ou estrita legalidade, no qual o fundamento é a determinação precisa do conteúdo do tipo penal e da sanção penal. O agente sendo considerado inimigo do Estado é punido pelo que ele representa, e não pelo que ele pratica, não pela conduta descrita no tipo penal.

Na história contemporânea, o nazismo e os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos da América são dois episódios que evidenciaram um Direito Penal do autor, estigmatizando e rotulando indivíduos, em clara contradição a um Direito Penal do fato.

Em 1933 Hitler assumiu o poder e com suas tropas nazistas instalaram o terror na Alemanha e nos países que ocupavam. Racismo, totalitarismo e nacionalismo foram alguns ideais seguidos pelos nazistas. Muitos opositores, juntamente com comunistas e judeus, foram levados para os campos de concentração. O nazismo levou milhares de pessoas, entre judeus, homossexuais e ciganos à morte. Muitos, inclusive, foram usados em terríveis experiências médicas. As pessoas eram sumariamente executadas em falsos quartos de banhos, que eram as câmaras de gás.

Em 11 de setembro de 2001, ocorreu o ataque aos Estados Unidos, por terroristas que derrubaram as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York e parte do prédio do Pentágono, em Washington D.C.. Após o fatídico 11 de setembro, o Presidente George W. Bush adotou medidas excepcionais de urgência, reagindo de maneira desproporcional aos ataques. O Patriot Act, é um controverso ato do Congresso dos Estados Unidos da América que o então presidente Bush, assinou tornando-o lei em 26 de outubro de 2001. O acrônimo significa "Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act of 2001" (algo como Ato de Unir e Fortalecer a América Providenciando Ferramentas Apropriadas Necessárias para Interceptar e Obstruir o Terrorismo, de 2001). Entre as medidas impostas pela lei, estavam a invasão de lares, espionagem de cidadãos, interrogatórios e torturas de possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a defesa ou julgamento. As liberdades civis com esse ato foram removidas do cidadão. Detenções ilegais e outros tratamentos desumanos eram permitidos no Afeganistão, no Iraque, na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, e na base naval norte-americana de Guantánamo, em Cuba. Figurando como desrespeito absoluto à dignidade da pessoa humana, contraditório, ampla defesa e devido processo legal daqueles que se enquadravam como inimigos. Os presos muitas vezes não possuíam os direitos de consultar advogados, visitas ou até mesmo de um julgamento. Existiam evidências de torturas e interrogatórios ilegítimos. As ações terroristas que levaram pânico, morte e destruição, criaram na sociedade um clima de insegurança e medo indiscriminado.

Neste caso, os direitos e as garantias fundamentais que dão sustentáculo ao Estado Democrático de Direito ficaram seriamente comprometidos.

O poder punitivo estatal para a contenção prévia do inimigo da sociedade atua tratando alguns seres humanos como se não fossem pessoas, mas entes perigosos. O inimigo, para o Direito Penal do Inimigo não é tido como um sujeito processual, que participa do processo, mas como um indivíduo perigoso.

Assim, na Alemanha, no nazismo, os judeus eram os inimigos, na atualidade, nos Estados Unidos o indivíduo que apresenta traços fisionômicos árabes, é suspeito de terrorismo, portanto inimigo, sem nenhuma prévia cautela e com total desrespeito à condição humana.

Nesse contexto, a história mais uma vez está sendo marcada pelo massacre desumano e criminoso de seres humanos considerados inimigos do Estado. Sendo punidos por uma política repressiva que pune o indivíduo pelo que ele é, e não pelo que ele fez ou deixou de fazer.

No tocante ao direito interno vigente, quando a Constituição Federal entrou em vigor no dia 5 de outubro de 1988, deixou margem para que a legislação infraconstitucional, através de leis, dispusesse sobre temas de grande dificuldade de solução em nível constitucional. Estabeleceu-se mandados de criminalização indicando matérias nas quais o legislador ordinário teria a obrigação e não a faculdade de legislar, e um dos exemplos está no tocante aos crimes hediondos, artigo 5º, XLIII da Constituição Federal de 1988.

O tema dos crimes hediondos gerou acirradas discussões na elaboração da Constituição, e a permanência da expressão “crimes hediondos”. A lei que trata desses crimes, mesmo antes de nascer já era objeto de controvérsias, em sua nomenclatura.

A edição da Lei n. 8072/90, de 25 de julho de 1990, era um imperativo constitucional previsto no artigo 5º, XLIII da Constituição Federal de 1988. Passaram-se quase dois anos para sua promulgação, coincidindo, com um momento de pânico que alguns setores da sociedade brasileira eram atingidos, principalmente a onda de sequestros no Estado do Rio de Janeiro. Era necessário o surgimento de dispositivos mais rigorosos que combatessem os chamados crimes hediondos, para tentar colocar um fim no clima de total insegurança vivido no País. Quando questionado onde estavam as autoridades, uma simbólica Lei de Crimes Hediondos – elaborada e aprovada às pressas, foi editada. Uma lei simbólica para um resultado simbólico.

O direito penal do inimigo, só poderia ser aceito como um direito penal de emergência, que vige excepcionalmente, onde em certas situações onde normas imprescindíveis para um Estado de liberdades perdem seu poder de vigência. O direito penal de inimigos deve ser separado do direito penal de cidadãos, de modo que não exista nenhuma possibilidade de que se possa infiltrar no ordenamento jurídico como uma interpretação sistemática ou analógica no direito penal dos cidadãos, que corresponde a exteriorização de um Estado Democrático de Direitos e Liberdades.

O Direito Penal do Inimigo ofende a Constituição, ninguém pode ser tratado como mero objeto, despido de sua condição de pessoa .

O fato de existirem leis penais que adotam princípios da teoria do Direito Penal do Inimigo não significa que ele possa existir como uma categoria dentro do ordenamento jurídico penal

O Direito Penal do Inimigo, ao aplicar excessivamente a punição de determinados comportamentos, contraria um dos princípios primordiais do Direito Penal: o princípio do direito penal do fato, segundo o qual não podem ser incriminados simples pensamentos ou a "atitude interna" do autor.

O modelo decorrente do Direito Penal do Inimigo não cumpre seu objetivo, uma vez que as leis que incorporam suas características não têm reduzido a criminalidade.

Por maiores que sejam as pressões internacionais na eliminação prévia do “inimigo”, não há concordar que direitos e garantias constitucionais, sejam colocados ignorados, em nome da segurança coletiva, da irracionalidade e da passionalidade.

Passado mais de vinte anos da promulgação da Lei dos Crimes Hediondos, ainda é cedo para afirmar que atingiu seu objetivo de diminuir a criminalidade criando uma maior segurança na população.

Jornais, e noticiários são evidentes ao demonstrarem que a segurança púbica continua sendo o maior problema em quase todos os Estados da Federação. Após a vigência desta Lei, os casos de sequestros não só não diminuíram como aumentaram significativamente. O tráfico ilícito de drogas e entorpecentes é notícia diária nos noticiários.

Não serão a rotulação qualificativa deste ou de outro crime, ou o aumento de pena, que resolverão o problema da criminalidade latente. Temporariamente tem-se a sensação de que o problema será amenizado. Porém até que a certeza da impunidade seja retirada da mente do criminoso, até que a confiança no sistema persecutório penal pela vítima sobreponha-se sobre o medo de que ao reconhecerem seus agressores sejam vítimas novamente, deverá ser feita uma reformulação em todo o sistema penal, iniciando-se pelo inquérito policial até o sistema penitenciário, para que traga a certeza e a confiança do cumprimento real da Lei.

Conclui-se, portanto, que a exacerbação punitiva e indiscriminada que alguns países vêm adotando para a contenção dos suspeitos de terrorismo afeta direta e imediatamente não apenas o devido processo legal, mas também, e sobretudo os direitos humanos fundamentais.

Querer, porém, que a aplicação da pena de privação da liberdade resolva a questão da segurança pública é desconhecer as raízes da criminalidade, pois de nada adiantam leis severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais duradouras ou mais cruéis sem combater a desigualdade social.

Assim, com esta força do simbolismo, o Direito Penal tem sua finalidade totalmente desviada, pois afervora a criminalidade ao invés de retribuir a conduta ilícita, incita ao invés de prevenir, camufla ao invés de resolver.



Autor: Raquel Kobashi Gallinati, advogada,mestre em Filosofia PUC/S.P. e especialista em ciências penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

colaborador: Rafael Gomes Anastácio, advogado.





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