DIREITO PENAL DO INIMIGO E LEI DOS CRIMES HEDIONDOS
O presente artigo tem como objetivo analisar a relação da teoria do
direito penal do inimigo, a lei dos crimes hediondos, e os princípios
constitucionais de um Estado Democrático de Direito, dos direitos e garantias
individuais dos cidadãos.
A forma de punição excessiva de determinados comportamentos contrários
ao ordenamento jurídico, considerados pelo grau de periculosidade do agente,
determinando o indivíduo como um verdadeiro inimigo do Estado, contraria um dos
mais importantes princípios do Direito Penal, o princípio da reserva legal ou
estrita legalidade, no qual o fundamento é a determinação precisa do conteúdo
do tipo penal e da sanção penal. O agente sendo considerado inimigo do Estado é
punido pelo que ele representa, e não pelo que ele pratica, não pela conduta
descrita no tipo penal.
Na história contemporânea, o nazismo e os atentados de 11 de setembro de
2001 nos Estados Unidos da América são dois episódios que evidenciaram um
Direito Penal do autor, estigmatizando e rotulando indivíduos, em clara
contradição a um Direito Penal do fato.
Em 1933 Hitler assumiu o poder e com suas tropas nazistas instalaram o
terror na Alemanha e nos países que ocupavam. Racismo, totalitarismo e
nacionalismo foram alguns ideais seguidos pelos nazistas. Muitos opositores,
juntamente com comunistas e judeus, foram levados para os campos de
concentração. O nazismo levou milhares de pessoas, entre judeus, homossexuais e
ciganos à morte. Muitos, inclusive, foram usados em terríveis experiências
médicas. As pessoas eram sumariamente executadas em falsos quartos de banhos,
que eram as câmaras de gás.
Em 11 de setembro de 2001, ocorreu o ataque aos Estados Unidos, por
terroristas que derrubaram as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York
e parte do prédio do Pentágono, em Washington D.C.. Após o fatídico 11 de
setembro, o Presidente George W. Bush adotou medidas excepcionais de urgência,
reagindo de maneira desproporcional aos ataques. O Patriot Act, é um controverso
ato do Congresso dos Estados Unidos da América que o então presidente Bush,
assinou tornando-o lei em 26 de outubro de 2001. O acrônimo significa
"Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required
to Intercept and Obstruct Terrorism Act of 2001" (algo como Ato de Unir e
Fortalecer a América Providenciando Ferramentas Apropriadas Necessárias para
Interceptar e Obstruir o Terrorismo, de 2001). Entre as medidas impostas pela
lei, estavam a invasão de lares, espionagem de cidadãos, interrogatórios e
torturas de possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a
defesa ou julgamento. As liberdades civis com esse ato foram removidas do
cidadão. Detenções ilegais e outros tratamentos desumanos eram permitidos no
Afeganistão, no Iraque, na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, e na base naval
norte-americana de Guantánamo, em Cuba. Figurando como desrespeito absoluto à
dignidade da pessoa humana, contraditório, ampla defesa e devido processo legal
daqueles que se enquadravam como inimigos. Os presos muitas vezes não possuíam
os direitos de consultar advogados, visitas ou até mesmo de um julgamento.
Existiam evidências de torturas e interrogatórios ilegítimos. As ações
terroristas que levaram pânico, morte e destruição, criaram na sociedade um
clima de insegurança e medo indiscriminado.
Neste caso, os direitos e as garantias fundamentais que dão sustentáculo
ao Estado Democrático de Direito ficaram seriamente comprometidos.
O poder punitivo estatal para a contenção prévia do inimigo da sociedade
atua tratando alguns seres humanos como se não fossem pessoas, mas entes
perigosos. O inimigo, para o Direito Penal do Inimigo não é tido como um
sujeito processual, que participa do processo, mas como um indivíduo perigoso.
Assim, na Alemanha, no nazismo, os judeus eram os inimigos, na
atualidade, nos Estados Unidos o indivíduo que apresenta traços fisionômicos
árabes, é suspeito de terrorismo, portanto inimigo, sem nenhuma prévia cautela
e com total desrespeito à condição humana.
Nesse contexto, a história mais uma vez está sendo marcada pelo massacre
desumano e criminoso de seres humanos considerados inimigos do Estado. Sendo
punidos por uma política repressiva que pune o indivíduo pelo que ele é, e não
pelo que ele fez ou deixou de fazer.
No tocante ao direito interno vigente, quando a Constituição Federal
entrou em vigor no dia 5 de outubro de 1988, deixou margem para que a
legislação infraconstitucional, através de leis, dispusesse sobre temas de
grande dificuldade de solução em nível constitucional. Estabeleceu-se mandados
de criminalização indicando matérias nas quais o legislador ordinário teria a
obrigação e não a faculdade de legislar, e um dos exemplos está no tocante aos
crimes hediondos, artigo 5º, XLIII da Constituição Federal de 1988.
O tema dos crimes hediondos gerou acirradas discussões na elaboração da
Constituição, e a permanência da expressão “crimes hediondos”. A lei que trata
desses crimes, mesmo antes de nascer já era objeto de controvérsias, em sua
nomenclatura.
A edição da Lei n. 8072/90, de 25 de julho de 1990, era um imperativo
constitucional previsto no artigo 5º, XLIII da Constituição Federal de 1988.
Passaram-se quase dois anos para sua promulgação, coincidindo, com um momento
de pânico que alguns setores da sociedade brasileira eram atingidos,
principalmente a onda de sequestros no Estado do Rio de Janeiro. Era necessário
o surgimento de dispositivos mais rigorosos que combatessem os chamados crimes
hediondos, para tentar colocar um fim no clima de total insegurança vivido no
País. Quando questionado onde estavam as autoridades, uma simbólica Lei de
Crimes Hediondos – elaborada e aprovada às pressas, foi editada. Uma lei
simbólica para um resultado simbólico.
O direito penal do inimigo, só poderia ser aceito como um direito penal
de emergência, que vige excepcionalmente, onde em certas situações onde normas
imprescindíveis para um Estado de liberdades perdem seu poder de vigência. O
direito penal de inimigos deve ser separado do direito penal de cidadãos, de
modo que não exista nenhuma possibilidade de que se possa infiltrar no
ordenamento jurídico como uma interpretação sistemática ou analógica no direito
penal dos cidadãos, que corresponde a exteriorização de um Estado Democrático
de Direitos e Liberdades.
O Direito Penal do Inimigo ofende a Constituição, ninguém pode ser
tratado como mero objeto, despido de sua condição de pessoa .
O fato de existirem leis penais que adotam princípios da teoria do
Direito Penal do Inimigo não significa que ele possa existir como uma categoria
dentro do ordenamento jurídico penal
O Direito Penal do Inimigo, ao aplicar excessivamente a punição de
determinados comportamentos, contraria um dos princípios primordiais do Direito
Penal: o princípio do direito penal do fato, segundo o qual não podem ser
incriminados simples pensamentos ou a "atitude interna" do autor.
O modelo decorrente do Direito Penal do Inimigo não cumpre seu objetivo,
uma vez que as leis que incorporam suas características não têm reduzido a
criminalidade.
Por maiores que sejam as pressões internacionais na eliminação prévia do
“inimigo”, não há concordar que direitos e garantias constitucionais, sejam
colocados ignorados, em nome da segurança coletiva, da irracionalidade e da
passionalidade.
Passado mais de vinte anos da promulgação da Lei dos Crimes Hediondos,
ainda é cedo para afirmar que atingiu seu objetivo de diminuir a criminalidade
criando uma maior segurança na população.
Jornais, e noticiários são evidentes ao demonstrarem que a segurança
púbica continua sendo o maior problema em quase todos os Estados da Federação.
Após a vigência desta Lei, os casos de sequestros não só não diminuíram como
aumentaram significativamente. O tráfico ilícito de drogas e entorpecentes é
notícia diária nos noticiários.
Não serão a rotulação qualificativa deste ou de outro crime, ou o
aumento de pena, que resolverão o problema da criminalidade latente.
Temporariamente tem-se a sensação de que o problema será amenizado. Porém até
que a certeza da impunidade seja retirada da mente do criminoso, até que a
confiança no sistema persecutório penal pela vítima sobreponha-se sobre o medo
de que ao reconhecerem seus agressores sejam vítimas novamente, deverá ser
feita uma reformulação em todo o sistema penal, iniciando-se pelo inquérito
policial até o sistema penitenciário, para que traga a certeza e a confiança do
cumprimento real da Lei.
Conclui-se, portanto, que a exacerbação punitiva e indiscriminada que
alguns países vêm adotando para a contenção dos suspeitos de terrorismo afeta
direta e imediatamente não apenas o devido processo legal, mas também, e
sobretudo os direitos humanos fundamentais.
Querer, porém, que a aplicação da pena de privação da liberdade resolva
a questão da segurança pública é desconhecer as raízes da criminalidade, pois
de nada adiantam leis severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais
duradouras ou mais cruéis sem combater a desigualdade social.
Assim, com esta força do simbolismo, o Direito Penal tem sua finalidade
totalmente desviada, pois afervora a criminalidade ao invés de retribuir a
conduta ilícita, incita ao invés de prevenir, camufla ao invés de resolver.
Autor: Raquel Kobashi Gallinati, advogada,mestre
em Filosofia PUC/S.P. e especialista em ciências penais pela Universidade
Anhanguera-Uniderp.
colaborador: Rafael Gomes Anastácio, advogado.
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