Princípio da
insignificância na jurisprudência do STF
Ao juiz, dotado normalmente de razoabilidade,
compete distinguir o joio do trigo. Quando o juiz não faz isso, se torna uma
máquina (máquina trituradora, dos marginalizados, dos réus incompetentes, que
nem sequer sabem praticar grandes furtos ou grandes roubos).
Contamos com poucas pesquisas a respeito da
jurisprudência do STF no campo da insignificância. O mais completo trabalho foi
elaborado por Ana Carolina Carlos de Oliveira, Daniela de Oliveira Rodrigues,
Douglas de Barros Ibarra Papa, Priscila AkiHoga, ThaísaBernhardtRibeito, sob a
coordenação do Dr. Pierpaolo Cruz Bottini e da Dra. Maria Tereza Sadek, que
realizou um levantamento global dos julgados envolvendo o princípio da insignificância, no STF, no período de 2005 a 2009.
O trabalho intitulado O Princípio da
Insignificância nos crimes contra o patrimônio e contra a ordem econômica:
análise das decisões do Supremo Tribunal Federal[1] traz interessantes números, que valem a pena ser analisados, ainda que
brevemente.
Como o objetivo da pesquisa era avaliar a aplicação
do princípio da insignificância em crimes cujo bem jurídico tutelado tivesse
valor patrimonial quantificável, excluiu-se a aplicação em crimes ambientais e
relacionados ao tráfico de drogas.
A primeira conclusão interessante diz respeito ao
número de casos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal invocando o princípio
da insignificância de 2005 a 2009: até 2006 apareceram somente 03 casos,
enquanto de 2006 a 2009 surgiram72.
Apurou-se também um aumento progressivo no total de
casos em que houve a reconhecimento do princípio nos julgados do Supremo. De
acordo com os pesquisadores, a partir de 2007 houve um grande aumento, sendo
que em 54,5% dos casos o princípio foi reconhecido no mérito e em 33,3% o
princípio foi reconhecido na liminar e no mérito, julgados em 2009.
Houve análise que levou em conta a espécie
processual em relação ao provimento, concluindo-se que a maior parte dos
debates é feita em habeas corpus (86,7%), tendo sido reconhecido o princípio em
64,7% dos casos (concessão apenas no mérito + concessão liminar e mérito).
Outro dado: nos crimes patrimoniais, o princípio
foi reconhecido em 52,2% (24 casos), e nos crimes fiscais/administração o
princípio foi reconhecido em 72,4% (21 casos).
Apontou-se também os principais argumentos
identificados para o reconhecimento ou não reconhecimento da insignificância:
a) existência de antecedentes, b) violência ou grave ameaça (em nenhum caso de
roubo analisado pela pesquisa houve o reconhecimento da insignificância, mesmo
se apurado pequeno valor), c) valor objetivo da coisa, d) alta reprovabilidade
da conduta (critério apontado no HC 84.412 e relacionado ao modus operandi), e)
capacidade econômica da vítima, f) Administração Pública (quando não se aplica
o princípio).
Sobre estes critérios, veja-se como se organizou
graficamente:
Dentre os bens objeto de “crime”, sobre os quais se
cogitou a insignificância, destaca-se o dinheiro (26,2%), seguido por objetos
eletrônicos (19,0%) e roupas (19,0%). O item alimentos e objetos de higiene
pessoal aparecem na sequência, respectivamente, com 14,3% e 11,9%.
Destacando a importância da Defensoria Pública,
concluiu-se que dentre todos os casos em que o princípio da insignificância foi
invocado, em 82,7% houve a atuação de um Defensor Público.
Os próprios pesquisadores ainda destacaram os dados
mais relevantes:
· O reconhecimento do princípio da insignificância
pelo STF cresceu significativamente no período analisado, sendo que o número de
decisões reconhecendo a insignificância triplicou entre 2007 e 2008.
· O valor objetivo da coisa aparece como argumento
mais citado para não reconhecimento da insignificância (56,7%); destacando-se
ainda a frequência do argumento condição da vitima (40%), que pode revelar a
preocupação da Corte com o impacto social das suas decisões.
· Para o reconhecimento da insignificância o termo
mais utilizado é a atipicidade (72,7%) – a revelar a posição dogmática do STF
de afastar a tipicidade com a insignificância – seguida pelo valor objetivo da
coisa (65,9%). Destacando-se a importância dos dispositivos na Lei de Execução
Fiscal como terceiro argumento mais presente nas decisões (38,6%).
· Ao longo dos anos/casos estudadosa segunda Turma
reconheceu mais vezes a insignificância (64,3%) do que a primeira Turma (54,6%)
· Nos casos de não reconhecimento da
insignificância o índice de decisões unânimes é maior (93,1%) do que nos casos
de reconhecimento de mérito e liminar (83,3%) ou que nos casos de
reconhecimento apenas no mérito sem o deferimento anterior da liminar (78,8%).
Dentre os casos em que houve divergência, 63,6% referem-se aos casos de
reconhecimento no mérito e 18,2% aos casos não reconhecidos.
· Em 82,7% dos casos estudadoshouve a atuação de um
Defensor Público, com 65% de reconhecimento da insignificância. Em 17,3% dos
casos houve a atuação de advogados particulares, com 38,5% de reconhecimento da
insignificância. Importa destacar que esse dado não revela necessariamente a
maior ou menor qualidade da atuação dos responsáveis pela defesa, vez que a
natureza dos casos é distinta e o espaço amostral também.
Valoração final. De 2010 a 2012 a
jurisprudência dos Tribunais Superiores, em geral, em relação aos delitos da
patuléia (da ralé), que é considerada uma classe perigosa, está se tornando
cada vez mais repressiva e subjetiva (cf., por exemplo, os HCs 109.183-RS e
110.932-RS, relatados pelo Min. Luiz Fux).Trata-se da adoção de umapolítica
criminal de “mão dura”, de orientação midiática, que vai se pacificando da
jurisprudência pátria superior. O direito penal, cada vez mais, vai se
transformando numa serpente: pica [mais intensamente] os descalços,
especialmente no que diz respeito aos crimes patrimoniais. Não é que o
patrimônio não deva ser tutelado. Não é que o pequeno ladrão deva ser premiado.
Não é que devemos estimular os pequenos furtos. Não é que não seja reprovável
subtrair coisas alheias. O furto deve continuar sendo furto. O ladrão deve ser
considerado ladrão. Mas existem “ladrões” e “ladrões”: ao juiz, dotado
normalmente de razoabilidade, compete distinguir o joio do trigo. Quando o juiz
não faz isso, se torna uma máquina (máquina trituradora, dos marginalizados,
dos réus incompetentes, que nem sequer sabem praticar grandes furtos ou grandes
roubos).
O princípio da razoabilidade, que muitas vezes
brilha pela ausência no tocante à aplicação do princípio da insignificância,
tem origem (frequentemente) na falta de compaixão que, na visão de Unamuno,
advém da falta de reconhecimento do nada que somos. Vale a pena ler (ou reler)
a magistral lição desse memorável poeta espanhol:
“Según te adentras en ti mismo y en ti
mismoahondas, vasdescubriendo tu propiainanidad, que no eres todo lo que eres,
que no eres lo que quisieras ser, que no eres, enfin, más que nonada. Y al
tocar tu propianadería, al no sentir tu fondo permanente, al no llegarni a tu
propiainfinitudni menos a tu propiaeternidad, te compadeces y te enciendesen
doloroso amor a ti mismo, matando lo que se llama amor propio, y no es sino una
especie de delectación sensual de ti mismo, algo como ungozarse a símismala
carne de tu alma. El amor espiritual a símismo, lacompasión que uno cobra para
consigo, podrá acaso llamarse egoísmo; pero es lo más opuesto que hay al
egoísmo vulgar. Porque de este amor o compasión a ti mismo, de esta intensa
desesperación, porque así como antes de nacer no fuiste, asítampocodespués de
morir serás, pasas a compadecer, esto es, a amar a todos tussemejantes y
hermanosenaparencialidad, miserables sombras que desfilan de su nada a su nada,
chispas de conciencia que brillanun momento enlas infinitas y eternas
tinieblas. Y de losdemáshombres, tussemejantes, pasando por los que más
semejantes te son, por tusconvivientes, vas a compadecer a todos los que viven
y hasta a lo que acaso vive pero existe” (Unamuno, Miguel, Obras selectas,
Madrid: Espasa, 1998. p. 137).
Nota
[1] Disponível em:
<www.premioinnovare.com.br>, 13set. 2011. Acesso em: 18 jul. 2012.
Autor
Diretor
geral dos cursos de Especialização TeleVirtuais da LFG. Doutor em Direito Penal
pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri (2001). Mestre
em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP
(1989). Professor de Direito Penal e Processo Penal em vários cursos de
Pós-Graduação no Brasil e no exterior, dentre eles da Facultad de Derecho de la
Universidad Austral, Buenos Aires, Argentina. Professor Honorário da Faculdade
de Direito da Universidad Católica de Santa Maria, Arequipa, Peru. Promotor de
Justiça em São Paulo (1980-1983). Juiz de Direito em São Paulo (1983-1998).
Advogado (1999-2001). Individual expert observer do X Congresso da ONU, em
Viena (2000). Membro e Consultor da Delegação brasileira no 10º Período de
Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, em Viena
2001.
Como citar
este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da
insignificância na jurisprudência do STF. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3318, 1ago. 2012 .
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22340>. Acesso
em: 2 ago. 2012.
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