por Ari Ferreira de Queiroz
Discorrendo sobre a independência do Poder Judiciário, escrevi (1) que “a inamovibilidade é a garantia de permanência na mesma comarca ou vara, donde o juiz só pode ser removido a pedido, incluindo por promoção, salvo por motivo de interesse público, quando o tribunal poderá, pelo voto de 2/3 de seus membros, assegurada ampla defesa, remover ou mesmo promovê-lo compulsoriamente, na forma do art. 93, VIII, CF (2)”, aliás, entendimento referendado pelo Superior Tribunal de Justiça, que o manifestou no julgamento do recurso ordinário em mandado de segurança nº 7077, do Estado do Amazonas, relator o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro (3), onde se fez constar que a “inamovibilidade é garantia assegurada ao funcionário público de não ser deslocado de um cargo para outro.
É direito ao exercício do cargo para o qual foi nomeado e tomou posse. A nomeação específica, portanto, é antecedente necessário. Em caso de nomeação sem indicação precisa e exclusiva da lotação, poderá ser designado para exercer a atividade compreendida na extensão da nomeação. Não evidenciado que o defensor público, no Estado do Amazonas, é nomeado para atuar junto a determinada vara, legal a designação feita pelo defensor público-geral do Estado, deslocando a impetrante, sem afetar as atribuições legais da defensoria publica”.
Somando-se à vitaliciedade e à irredutibilidade de vencimentos, a inamovibilidade completa o conjunto das prerrogativas da magistratura, que não podem ser confundidas, como privilégios do juiz, senão apenas garantias mínimas para o exercício da função jurisdicional com a necessária isenção. Com a garantia da inamovibilidade, o juiz sabe que pode decidir mesmo contrariando interesses de quem quer que seja sem que receio de sofrer perseguições, ostensivas ou veladas, ou punições mascaradas sob a forma de remoção, transferência, relotação ou promoção para local distante, ou que, por qualquer outra razão, não seja de seu interesse.
Ter em uma comarca ou vara um juiz com receio de perseguições, é pior do que tê-la desprovida, porque seria extremamente chocante (do ponto de vista jurídico) saber que suas decisões são tomadas de olhos voltados para aquele que detém o poder de puni-lo. Desde a Constituição Federal de 1934, consta regra clara de que o juiz tem direito de exercer as suas funções no local para o qual fora designado, dali só podendo ser removido em três situações, quais sejam, a pedido seu, ou por aceitar promoção, ou, por último, em caso de interesse público manifestado por decisão de 2/3 dos membros do tribunal ao que se ache vinculado.
Dizia, realmente, o art. 64 daquela Carta Constitucional:
”Salvo as restrições expressas na Constituição, os juízes gozarão das seguintes garantias:
a) vitaliciedade, não podendo perder o cargo senão em virtude de sentença judiciária, exoneração a pedido ou aposentadoria, que será compulsória aos 75 anos de idade, ou por motivo de invalidez comprovada, e facultativa em razão de serviços prestados por mais de trinta anos, e definidos em lei;
b) inamovibilidade, salvo remoção a pedido, por promoção aceita, ou pelo voto de dois terços dos juízes efetivos do tribunal superior competente, em virtude de interesse público;
c) irredutibilidade de vencimentos, os quais ficam, porém, sujeitos aos impostos gerais”.
Repetidas pelas constituições que se seguiram, as prerrogativas da magistratura se encontram enraizadas em nosso direito positivo de tal sorte que outras categorias profissionais as incluíram em seus respectivos regimes jurídicos, a saber:
a) os Ministros do Tribunal de Contas da União, que contam com as mesmas prerrogativas, garantias, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (art.73, § 3º, CF) (4);
b) o Auditor de Contas do Tribunal de Contas da União, que tem as mesmas garantias e impedimentos do juiz de Tribunal Regional Federal (art. 73, § 4º, CF) (5);
c) os Conselheiros de Tribunal de Contas do Estado ou de Tribunal de Contas dos Municípios, que têm as mesmas prerrogativas, garantias, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Desembargadores do Tribunal de Justiça (art. 75, CF) (6);
d) os representantes do Ministério Público, que por expressa disposição constitucional gozam das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (art. 128, § 5º, I) (7);
e) os defensores públicos, que gozam da garantia da inamovibilidade (art. 134, par. único, CF) (8).
Aliás, segundo o Colendo STF, em acórdão da lavra do E. Ministro Celso de Mello (9), entendimento em relação ao qual guardo reservas, a inamovibilidade dos membros do Ministério Público foi erigida ao ponto de reconhecer-lhes até mesmo o princípio do promotor natural, que se revela como imanente ao sistema constitucional brasileiro e repele, a partir da vedação de designações casuística efetuadas pela chefia da instituição, a figura do acusador de exceção.
No julgado, acrescentou o ilustre Ministro que “esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Publico, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do promotor natural limita, por isso mesmo, o poder do procurador-geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável”.
Por conseguinte, no âmbito de tais categorias funcionais, ainda que por força de uma “vinculação” para com a magistratura, a garantia da inamovibilidade está incrustada de modo a permitir aos seus agentes o livre exercício da atividade sem receio de serem punidos com remoções ou transferências involuntárias.
Se assim se deu com esta gama de categorias funcionais, por quê não dizer o mesmo quanto aos delegados de polícia? Por quê o defensor público tem direito à inamovibilidade e o delegado não? Quem trabalhou em pequenas cidades do interior, onde grupos tradicionais dominam e representam o próprio poder, já deve ter visto, ou pelo menos tomado conhecimento, de agentes policiais, incluindo delegados, que foram transferidos bruscamente para qualquer outro lugar simplesmente porque o prefeito municipal ou seu vice, o deputado estadual da região, o simples vereador, ou qualquer outro líder político, não gostou de seu modo de atuação.
Permitindo-me não declinar nomes para não ferir as pessoas envolvidas, vez que o passar do tempo vai apagando da memória, lembro-me de que certa feita em comarca onde atuei como juiz de direito, num final de semana policiais civis apreenderam um veículo com o qual um adolescente fazia manobras perigosas (racha, derrapagens etc.) e, diante da reação do motorista, apreenderam-no também. Este foi o “erro” dos agentes, afinal de contas o adolescente era filho do vice-prefeito da cidade. Ao tomar conhecimento da apreensão do filho, o vice-prefeito ameaçou os agentes policiais dizendo que iria transferi-los da cidade. Não se passaram dois dias e, realmente, um dos agentes fora transferido sem maiores explicações, de nada adiantando nem mesmo meus apelos pela relevação da sanção, pois a cidade só tinha aqueles dois agentes e ficaria desguarnecida. E ficou. O agente remanescente e seu delegado disseram que nunca mais se envolveriam com filhos de autoridades, mesmo que os encontrassem na qualidade de malfeitores. Assim foi feito e o vice-prefeito mostrou, efetivamente, quem manda.
Este é um relato simples, mas que certamente se repete por nosso gigantesco país. Ora, se o defensor público, que não acusa, nem investiga ninguém, goze da garantia da inamovibilidade, o mais lógico é que o delegado de polícia, que exerce função de risco, mexe com interesses superiores, investiga filhos de autoridades e políticos, expõe sua vida e de sua família, também a tenha.
Em minha visão externa, assim considerado o fato de não pertencer aos quadros da polícia, penso que os delegados formam uma categoria, paradoxalmente, deveras importante e ao mesmo tempo desprestigiada. Importante, são os responsáveis pelas investigações criminais, atuando como um apêndice do Poder Judiciário; desprestigiada, porque não têm nem as mesmas garantias que se asseguram aos defensores públicos.
Se é lamentável ver um delegado de polícia tendo que recorrer a políticos para conseguir uma promoção ou remoção, é deprimente vê-lo tendo que recorrer a estes mesmos políticos para não ser removido ou transferido contra sua vontade, especialmente quando, no exercício de suas funções, contrariou interesses de quem manda. Nem é preciso dizer o quanto isso influencia, negativamente, na liberdade de ação policial, elemento indispensável para a segurança pública, ultimamente muito arranhada pelos altos índices de criminalidade que assustam até o mais despreocupado dos homens.
Seria, pois, de bom alvitre que as autoridades competentes provocassem o Poder Legislativo por meio de projeto de lei que estendesse aos delegados de polícia pelo menos a garantia da inamovibilidade. Esta garantia não representa diminuição de poder do Chefe de Polícia, Secretário de Segurança ou de quem quer seja o superior, mas apenas evita arbitrariedades e diminui a dependência da autoridade policial de intempéries políticas. A exemplo do que se passa com a magistratura, e bem assim com os membros do Ministério Público, a garantia da inamovibilidade não impedirá delegado poderá seja transferido contra a sua vontade, desde que conveniente para o interesse público. O que não é admissível é confundir o interesse do governador ou outra autoridade superior como sendo, necessariamente, um interesse público. O interesse público está acima das pessoas e autoridades e não admite solução por amor ou ódio, paixão ou emoção, proteção ou perseguição.
A título de sugestão, na estrutura da segurança pública em cada Estado deveria haver um órgão superior colegiado, encarregado da disciplina policial, formado por delegados da última classe da categoria, com no mínimo 35 anos de idade e 10 anos de carreira, a quem competiria, entre outras atribuições, decidir, pelo voto de 2/3 dos seus membros, os casos de remoção, transferência e relotação compulsórias, e também as promoções por antigüidade e merecimento, sempre em decisão fundamentada e assegurando ao interessado o direito ao contraditório e à ampla defesa. Manteria o poder discricionário, mas se evitaria o arbítrio, fazendo prevalecer a justiça. Seria uma forma de se dar independência aos delegados para que pudessem, sem receio de perseguições, desempenhar com denodo e imparcialidade a missão constitucional de polícia judiciária.
NOTAS
1. Direito Constitucional, 10ª ed. p. 318, IEPC, Goiânia : 2000.
2. “O ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto de dois terços do respectivo tribunal, assegurada ampla defesa”.
3. DJU, 16/12/1996, p. 50958.
4. “Os Ministros do Tribunal de Contas da União terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça e somente poderão aposentar-se com as vantagens do cargo quando o tiverem exercido efetivamente por mais de cinco anos”.
5. “O auditor, quando em substituição a Ministro, terá as mesmas garantias e impedimentos do titular e, quando no exercício das demais atribuições da judicatura, as de juiz de Tribunal Regional Federal”.
6. “As normas estabelecidas nesta Seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Parágrafo único. As Constituições estaduais disporão sobre os Tribunais de Contas respectivos, que serão integrados por sete conselheiros”.
7. “Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: I – as seguintes garantias: a) vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado; b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, por voto de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa; c) irredutibilidade de vencimentos, observado, quanto à remuneração, o que dispõem os arts. 37, XI, arts. 150, II, 153, III e 153, § 2.º, I”.
8. “Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais”.
9. HC 67759/RJ, de 06/08/1992 – Tribunal Pleno.
Ari Ferreira de Queiroz é juiz de Direito, professor de Direito da Universidade Católica de Goiás, da Escola Superior da Magistratura, de pós-graduação na UNIFRAN e de várias outras IES, mestre em Direito do Estado pela Universidade de Franca (SP), doutorando em Direito Público pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires)
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