“Aumento de pena não é garantia de punição”
O Código Penal elaborado pela comissão de juristas escalada pelo Senado ficará maior do que o atual, mas mais sistemático e objetivo. É o que afirma o presidente da comissão, ministro Gilson Dipp, que tem reunido seu grupo duas vezes por semana, em sessões abertas, para entregar, ainda neste semestre, o anteprojeto de lei que, depois, será discutido no Congresso Nacional.
“Mesmo com a limpeza que se faça, haverá um acréscimo. Mas benéfico. O Código Penal será o centro do sistema penal brasileiro”, garante o ministro do Superior Tribunal de Justiça. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, que contou com a colaboração de perguntas enviadas pelo promotor de Justiça André Luís Alves de Melo, promotor em Minas Gerais, o ministro mostrou o quão polêmico é o texto.
Nada escapou: são ampliadas as hipóteses de aborto, permitida a ortotanásia, descriminalizadas condutas atípicas. Por outro lado, a comissão propõe penas mais rigorosas para crimes financeiros e tipifica o terrorismo. Outro ponto polêmico é a criminalização do enriquecimento ilícito. Já depois da entrevista, a comissão aprovou a criminalização da violação das prerrogativas dos advogados. O texto aprovado foi proposto pelo advogado criminalista Técio Lins e Silva, que faz parte do grupo.
De acordo com Dipp, a comissão partiu de duas premissas. A primeira foi não deixar de lado nenhum tabu. “Teríamos de enfrentar todas as questões necessárias, independentemente de seu potencial de causar polêmica. Nem se fosse para chegar a determinado ponto e reconhecer que certo tipo penal não seria oportuno de ser criado ou modificado”, afirmou o ministro. A segunda diretriz foi fazer do Código Penal o centro do sistema penal brasileiro.
Como diz o ministro, o essencial é adaptar o Código Penal à Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais no âmbito penal dos quais o Brasil é signatário. “O Código Penal tem 72 anos. Alguns brincam que já deveria ter sido atingido pela aposentadoria compulsória”, brincou. Do texto, que Dipp pretende entregar entre o final de maio e o começo de junho, pode-se esperar objetividade.
A comissão não se rendeu a propostas populistas. Segundo Gilson Dipp, houve mais de 2,5 mil manifestações de pessoas com sugestões feitas pelo site do Senado — 90% delas pedindo o endurecimento de penas. Esse, contudo, não é o caminho. “É possível endurecer algumas coisas, mas tem que haver alguma concorrência de todos os órgãos de segurança pública para aplacar a sensação de impunidade, senão nada adianta. O aumento de pena não é garantia de punição”.
Leia a entrevista
ConJur — Quando a comissão entregará ao Senado o anteprojeto de lei de reforma do Código Penal?
Gilson Dipp — A previsão é 25 de maio. Pode ocorrer de precisarmos de mais alguns dias, mas o fato é que entregaremos o projeto antes do recesso do Congresso Nacional.
ConJur — Quais os parâmetros adotados pela comissão para a reforma?
Dipp — O primeiro foi que nenhum tabu seria deixado de lado. Partimos do pressuposto de que teríamos de enfrentar todas as questões necessárias, independentemente de seu potencial de causar polêmica. Nem se fosse para chegar a determinado ponto e reconhecer que certo tipo penal não seria oportuno de ser criado ou modificado. O objetivo da comissão é, em primeiro lugar, adaptar o Código Penal à Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais no âmbito penal dos quais o Brasil é signatário. O Código Penal tem 72 anos. Alguns brincam que já deveria ter sido atingido pela aposentadoria compulsória.
ConJur — Há um trabalho de consolidação das leis penais?
Dipp — Essa foi a segunda diretriz, fazer do Código Penal o centro do sistema penal brasileiro, principalmente na parte especial. Nesse período, foram aprovadas 140 leis especiais ou extraordinárias tratando de matéria penal, de crimes. Mais de 50 modificaram pontualmente o Código Penal. E dois terços dessas pouco mais de 50 leis foram sancionados depois da Constituição de 1988. Isso revela a necessidade de atualização do Código. Um dos objetivos é deixar no Código Penal apenas as condutas que são realmente lesivas à sociedade. Uma parte da comissão fez o levantamento de todas as leis penais para esse trabalho ser bem realizado.
ConJur — Há exemplos de leis muito defasadas?
Dipp — A lei que define crimes de colarinho branco, por exemplo, é completamente defasada, mal feita. As penas previstas são muito pequenas. Tanto que há vários condenados por esses crimes, mas ninguém preso. As penas são prestação de serviço e multa séria. Mas como as penas são pequenas, podem ser substituídas por restritivas de direitos. Mas, ainda na parte de consolidação, estamos trazendo para o Código Penal a lei dos crimes ambientais, de lavagem de dinheiro, a que tipifica organizações criminosas, a de abuso de poder, as que definem crimes de trânsito. Outro trabalho é o de reapreciar todos os tipos penais existentes e a necessidade de criação de tipos novos. Essa é a política.
ConJur — Além de reformular, consertar distorções é um trabalho importante, não?
Dipp — Sim. É necessário observar desproporções. Por exemplo, a lei que foi criada após aquele caso das pílulas anticoncepcionais que não funcionaram.
ConJur — O caso das pílulas de farinha...
Dipp — Este. Criaram um tipo muito amplo que se enquadra como crime hediondo. Hoje, a falsificação de uma pomada para a pele ou a alteração de um componente de produto cosmético pode fazer a pessoa ser condenada a uma pena mais grave do que aquela pessoa que pratica um homicídio. Essas distorções estão sendo corrigidas.
ConJur — Houve consultas à sociedade?
Dipp — Sim. Fizemos, por exemplo, uma audiência pública no Tribunal de Justiça de São Paulo, no Salão dos Passos Perdidos. Muita gente participou. Desde instituições como OAB, Defensoria Pública, Ministério Público, IBCrim até organizações não governamentais e movimentos organizados da sociedade civil. Havia associações de direitos dos homossexuais, movimentos em favor do aborto e contra, houve vaias e aplausos durante as manifestações. Uma audiência muito produtiva. A sociedade se entusiasmou.
ConJur — Os senhores propõem mudanças em relação ao aborto?
Dipp — Aumentamos a possibilidade do aborto legal. Hoje é permitido o aborto apenas em caso de estupro e grave risco de vida da mãe. Substituídos grave risco de vida da mãe por grave risco à saúde, o que amplia as hipóteses. E permitimos a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos mesmo antes da decisão do Supremo. O aborto continua tipificado como crime, mas as hipóteses de aborto legal foram ampliadas.
ConJur — Ampliadas quanto? Além destas que o senhor citou, há outras hipóteses?
Dipp — Pela proposta, será permitido o aborto não só de fetos anencéfalos, mas de todo feto portador de graves e irreversíveis anomalias atestadas com segurança por laudos médicos fundamentados, evidentemente. É prevista também a possibilidade do aborto decorrente de técnica de reprodução assistida e não consentida. E mais, que certamente gerará polêmica, há a previsão de que em toda gravidez poderá ser feito o aborto até a décima segunda semana nos casos em que a mãe não tenha a menor condição de criar os filhos.
ConJur — Condições financeiras?
Dipp — Não só financeiras. Principalmente condição psicológica, atestada por médicos, psiquiatras e psicólogos. Aí me perguntam: “Mas como atestar isso?”. Reportagens recentes mostraram mulheres grávidas em cracolândias, perdidas, com a mãe do ex-companheiro correndo atrás da nora e ela fugindo para a cracolândia. Há condições? Mas cabe ao Parlamento dar a última palavra. O que estamos elaborando é um anteprojeto que será entregue ao Senado. É no Congresso que se dará a grande discussão.
ConJur — Mas o senhor vê a possibilidade de pontos polêmicos como esses serem aprovados?
Dipp — Estamos sempre conversando para que haja possibilidade de ser aprovado. Não estamos fazendo um trabalho teórico. É um trabalho visando à facilitação do trabalho do Parlamento em discutir, para que seja aprovada a maior parte do que propusermos. Há senadores que são nossos interlocutores.
ConJur — Há mais mudanças polêmicas como essas?
Dipp — Tipificamos a eutanásia como homicídio autônomo e não como causa de atenuante. É um homicídio privilegiado. Não é a redação definitiva, mas vai dar uma clareza maior ao tema. Eutanásia é o homicídio privilegiado que é aquele em que o autor do crime age por piedade, a pedido do paciente terminal, imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave, irreversível, atestado por dois médicos. Esse atestado não é um atestado puro e simples, deve ser um laudo maior.
ConJur — Qual a pena?
Dipp — Seria a pena menor, porque é um homicídio privilegiado com atenuante. A proposta é prisão de 3 a 6 anos. E mais o importante, uma excludente de crime que é a ortotanásia. Na redação da comissão, ficou assim: Não constitui crime deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários ou artificiais, quando a morte, previamente atestada por dois médicos, for eminente e inevitável, desde que haja pedido do paciente terminal ou na sua impossibilidade, o descendente, ascendente, companheiro, cônjuge, um irmão.
ConJur — Ou seja, me deixe morrer em paz...
Dipp — Não quero métodos dolorosos que estão mantendo artificialmente minha vida. Se o sujeito não tem possibilidade de viver e quer passar os últimos dias no carinho da família, por que impedi-lo? O ministro Menezes Direito, que era praticamente um médico, dizia: “Não quer que alguém morra? Põe em uma UTI”.
ConJur — O Supremo vem reinterpretando o Código Penal ao longo dos anos. Exemplos mais recentes são as decisões sobre a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos e a permissão da Marcha da Maconha. O anteprojeto absorverá esses direcionamentos do Supremo?
Dipp — Claro que estamos levando em conta as posições do Supremo. Mas eu garanto que nós vamos ser muito mais avançados do que o próprio Supremo. Depois, é com o Parlamento.
ConJur — Até porque o Parlamento é o lugar para ser avançado, não é?
Dipp — É lá o foro apropriado. A grande vantagem dessa comissão é que foi criada dentro do Senado. O presidente (do Senado) José Sarney parece ter a intenção de encerrar o mandato com revisão de toda a legislação.
ConJur — Como a comissão trata a questão do tráfico de drogas?
Dipp — Queremos deixar bem claro o que é o traficante, o que é o dependente e o que é o usuário. O caso do dependente, hoje, não é crime, mas tem pena. Qual é a pena? É o tratamento médico, psicológico, que o juiz determina. Mas em varas do interior, até em capitais, o juiz dá uma advertência e solta o sujeito sem tutela do médico, sem acompanhamento psicológico ou internação se for o caso. Nós estamos tratando disso, mas estes pontos ainda não estão definidos.
ConJur — O terrorismo será tipificado?
Dipp — Sim. Basicamente é causar terror à população mediante carregar explosivos, explodir estações, estádios, promover incêndios. Tudo aquilo que cause um verdadeiro terror na população. Apesar de o Brasil ter assinado vários tratados internacionais, eu sempre fui contra a tipificação porque me parecia uma pressão desmedida dos Estados Unidos. Mas nesse momento em que o Brasil terá grandes eventos como Olimpíadas, Copa das Confederações, Copa do Mundo, em que pelo menos três países que sofreram na carne a barbárie do terrorismo estarão presentes, como Estados Unidos, Espanha e Reino Unido, achei razoável discutir a tipificação. Até já existia uma lei que descrevia atos de terrorismo, mas que ninguém quer ressuscitar, que é a Lei de Segurança Nacional. Então, na aprovação do terrorismo, imediatamente a comissão propõe a revogação da Lei de Segurança Nacional.
ConJur — Por que existe resistência para a tipificação do terrorismo?
Dipp — O temor é a criminalização dos movimentos sociais. Leia-se: MST. E aí eu propus uma cláusula de exclusão com o seguinte teor: não consistem atos de terrorismo aqueles atos sociais ou reivindicatórios mediante ações compatíveis com a sua finalidade. Houve discussão, mas foi aprovado pela comissão. O que queremos deixar claro é que o tipo penal não possa ser empregado para punir os movimentos sociais. Pode, em tese, o movimento social praticar ato terrorista, mas não se praticar atos que correspondam à sua finalidade.
ConJur — O Código Penal vai englobar a lei de execução penal?
Dipp — Na parte geral, estamos modificando a lei de execução. Criamos um regime alternativo de progressão da pena. A progressão se dará com um sexto, um terço, três quintos e até metade da pena dependendo do crime, da reincidência etc. Estamos modificando totalmente, esclarecendo, a chamada dosimetria da pena. Grande parte dos pedidos de Habeas Corpus questiona a dosimetria da pena. Então, é uma aritmética que ninguém sabe fazer. Vamos deixar uma margem maior para o juiz, inclusive o juiz da execução poderá em certos casos modificar a pena fixada na sentença condenatória.
ConJur — A comissão tentará estabelecer critérios mais objetivos?
Dipp — Mais objetivos, mais claros, mais inteligíveis. Se o Código Penal for mais claro, sem essa colcha de retalhos de várias leis, ele poderá ser aplicado com justiça.
ConJur — Quando o Código Penal foi aprovado, em 1940, a expectativa de vida do brasileiro era de 55 ou 60 anos. Hoje é de 73 anos. Partindo dessa premissa, pessoas defendem que se aumente também o tempo máximo de prisão que é permitido no Brasil, que hoje é de 30 anos. A comissão trata disso?
Dipp — Chegamos a debater. Houve propostas para que aumentasse para 40 ou 50 anos. Mas não chegamos a deliberar. A tendência é manter os 30 anos, com uma progressão mais rígida dependendo da gravidade do crime. Dados mostram que houve mais de 2,5 mil manifestações de pessoas com sugestões feitas no site do Senado. E 90% das manifestações populares são pelo endurecimento das penas. É a questão da segurança pública e a sensação de impunidade. Então, o que o povo pensa? Tem que endurecer! Mas não adianta. É possível endurecer algumas coisas, mas tem que haver alguma concorrência de todos os órgãos de segurança pública para aplacar a sensação de impunidade, senão nada adianta. Polícias mais bem aparelhadas, polícias técnicas, salários melhores de policiais, preparo, Ministério Público mais eficaz, Judiciário mais ágil. Isso é um complexo de fatores que gera a impunidade. O aumento de pena não é garantia de punição. O aumento da criminalidade se dá pela certeza da impunidade.
ConJur — A comissão irá prestigiar a reparação de dano no Código Penal? Há alguma previsão, por exemplo, de exigir reparação de dano para progressão de regime?
Dipp — Sim. Por exemplo, no regime aberto, não haverá mais casa de albergado. A progressão já começará com a prestação de serviços à comunidade ou reparação de danos. A reparação de dano está prevista como pena, inclusive, perda de bens, perda de valores, reparação de dano ao erário. Nós estamos atentos aos crimes não só contra o patrimônio privado, que é a tônica do Código de 1940, mas também contra o patrimônio público. Eu propus trazer para o Código a responsabilização penal da pessoa jurídica.
ConJur — Não só nos crimes ambientais?
Dipp — Não. As penas serão compatíveis com a natureza da pessoa jurídica. Por exemplo, a suspensão de atividades, multas pesadas, proibição de contratar serviço público. Alguns dizem que essas penas são aplicadas no âmbito administrativo. Sim. Mas o estigma penal, a condenação criminal, vai pesar muito mais. E aí é questão de a Administração Pública ser mais rígida nas contratações.
ConJur — Delação ou confissão premiada é matéria para o Código Penal?
Dipp — Não. Trouxemos para o Código o conceito de organização criminosa, que é o tipo penal. Delação premiada, infiltração de agente policial em ação criminosa, ação controlada, tudo isso são métodos modernos de investigação, meios de prova. Isso fica na lei especial. Para diferenciar do tipo penal antigo de formação de bando e quadrilha, nós usamos um termo mais moderno, que é associação criminosa, que não tem a periculosidade da organização criminosa, que é aquela que está na convenção da ONU contra o crime organizado, a Convenção de Palermo.
ConJur — E transação penal?
Dipp — Também não é matéria do Código Penal. Existe a Lei 9.099 e nós não vamos mexer nela. Porque se nós trouxermos tudo para o Código, faremos um calhamaço sem razão.
ConJur — A comissão trata da exploração de jogos sem autorização, como o Jogo do Bicho?
Dipp — Hoje, sabemos que a contravenção penal do Jogo do Bicho e das máquinas caça-níqueis, que eram figuras folclóricas em 1940, objeto de marchinhas carnavalescas e inofensivas, hoje são a grande mola propulsora para a prática de outros crimes muito mais graves, que não são contravenções penais, como caso de lavagem de dinheiro, homicídios, corrupção e tráfico de entorpecentes. Hoje, tudo gira em torno do jogo do bicho e dos jogos de azar, principalmente das máquinas caça-níqueis. Então, temos que tipificar. O texto proposto é mais ou menos o seguinte: Explorar jogos de azar que não tem autorização legal ou regulamentar. A pena é de um a dois anos de prisão, mas sempre acrescida, no caso concreto, das penas de outros crimes conexos. Porque eles não são praticados isoladamente. Estamos pensando também na tipificação penal das milícias. Haverá uma audiência pública no Rio de Janeiro, em 14 de maio, e vamos tentar discutir esses temas.
ConJur — Como tipificar as milícias?
Dipp — Milícia é apropriação de um espaço público privado, por agentes públicos ou ex-agentes públicos, para tirar proveito econômico. E o que explora? Tudo aquilo que o poder público explora. Distribuição de gás, TV a cabo, outros serviços básicos. Exploram mediante o terror e disputam os seus espaços, os seus territórios.
ConJur — À bala, não?
Dipp — À bala. Tem que criminalizar? Eu acho que sim. A proposta é fazer um Código Penal moderno. De hoje projetado para o futuro. Um código que tem que ter aplicação em uma sociedade plural. Ele pode e deve valer para o executivo da Avenida Paulista e para o ribeirinho do Amazonas.
ConJur — A comissão quer criminalizar o enriquecimento ilícito?
Dipp — Há discussões nesse sentido. Alguns dizem que não é necessário porque existe a Lei de Improbidade, que é civil, apesar de os tipos serem todos tipicamente penais. O enriquecimento ilícito é o patrimônio adquirido pelo funcionário público, lato sensu, desproporcional à sua remuneração e que ele não possa fundamentadamente justificar.
ConJur — Mas isso não é a inversão do ônus da prova?
Dipp — Não. O agente público, o funcionário público, todos nós temos de apresentar, desde que entramos no serviço público e todos os anos, a nossa declaração de renda. Isso é contra prova? Não. Eu tenho que, todos os anos, apresentar ao STJ a minha declaração de renda e a minha evolução patrimonial. E se eu não puder justificar eu poderei ser punido. A Receita federal não me convoca para pedir explicações se for necessário? Não exige recibos ou os cheques que comprovem determinadas movimentações? O princípio é o mesmo. São as PPEs – Pessoas Politicamente Expostas. Isso é uma determinação de convenções internacionais. Pessoas que sejam politicamente expostas, como governadores, deputados estaduais, federais, membros do Ministério Público, do Poder Judiciário, devem ter suas contas monitoradas. Certos atos têm que ser autorizados pela autoridade competente. Eu não sei, até hoje, se é o gerente do banco ou se é o presidente do banco. Mas esse monitoramento já existe. Eu estou tentando minar a resistência. Tem de tipificar porque isso é uma convenção internacional. O Senado aprovou por Decreto Legislativo a aplicação da convenção. Estamos tentando redigir um tipo penal palatável.
ConJur — Crimes cibernéticos serão tipificados?
Dipp — Estamos discutindo tipos específicos para isso. Fui relator no STJ de quase todos os pedidos de Habeas Corpus decorrentes daquela operação Cavalo de Tróia. Os acusados entravam nas contas bancárias, falsificavam a senha e tiravam o dinheiro das contas. Nas denúncias, nas ações penais, e depois eu vi isso nos pedidos de HC, sempre tipificavam como estelionato ou furto qualificado mediante fraude. Irá chegar um momento em que esses tipos penais não vão atender à demanda de crimes cibernéticos sofisticados. Por exemplo, invasão ao site da Presidência da República. Qual o tipo penal? No Distrito Federal tiraram os sites de diversos bancos do ar ao mesmo tempo. Como tipificar isso penalmente? Temos que criar um tipo específico para esses casos. Até quando o estelionato ou o furto qualificado vão servir para isso?
ConJur — O que mais o anteprojeto prevê?
Dipp — Devemos colocar na parte geral do Código os princípios gerais para crimes eleitorais. E também colocar na parte geral da aplicação das penas os crimes militares. No STJ, há muitos pedidos de Habeas Corpus contra tribunais militares de estados e até do Superior Tribunal Militar, que não permitem a progressão de regime em matéria militar. Houve uma sugestão para criar no Código Penal um capitulo próprio dos crimes impropriamente militares e dos crimes propriamente militares. Ou seja, vai ser uma revolução que acaba com o Código Militar. Só não sei se haverá tempo para concluir tudo isso.
ConJur — Homofobia será tipificada como crime?
Dipp — Não foi apresentado ainda um arcabouço do tipo penal, mas não é mais possível que sejam aplicados outros tipos penais pré-existentes aos crimes homofóbicos, que muitas vezes não se amoldam e não dão a dignidade da proteção à liberdade sexual. Nós ainda não temos o tipo formatado. Alguns propõem colocar como agravante. Eu não concordo. Como disse antes, esse Código não é só para hoje. É para o futuro.
ConJur — A comissão irá tratar da Lei Seca? Consertar o erro legislativo do Congresso?
Dipp — Tratamos disso. Tiramos a dosagem específica para caracterizar a embriaguez. O texto está assim: Conduzir veículo automotor na via pública sobre influencia do álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial, não à segurança de outrem, mas à segurança viária.
ConJur — Ou seja, foi pego dirigindo bêbado, cometeu crime, independentemente do dano.
Dipp — Prisão de um a três anos, sem prejuízo da responsabilização por qualquer outro crime cometido. A infração poderá ser demonstrada mediante qualquer meio de prova no direito admitido. Isso quer dizer, prova testemunhal, o depoimento da autoridade policial, o exame clínico, o exame médico, o vídeo...
ConJur — Há uma tendência de aumentar as ações penais condicionadas à representação da vítima?
Dipp — Não. Nos crimes contra a honra, a ação continua condicionada à representação da vitima. Aumentamos a pena porque achamos que a dignidade, a honra, é um bem constitucionalmente protegido. Ainda há a possibilidade de desistência da ação mediante retratação ou até reparação de danos. E como pena para o crime contra a honra, além do aumento, multa violenta.
ConJur — Crime continuado vai permanecer no código penal? Criminosos, profissionais, que cometem dezenas de crimes em intervalo curto de tempo, vão responder por um crime com aquela previsão de aumento de um sexto da pena?
Dipp — A parte geral, apesar de estar adiantada, não foi totalmente debatida ainda. Mas vamos aos exemplos. A figura do estupro nós estamos estabelecendo estupro anal, vaginal e oral. Bem definidos. E se os três forem praticados, haverá um aumento de pena. Excluímos o crime continuado neste caso. Nós estamos colocando figuras específicas e, se forem praticados juntos, haverá aumento da pena. São crimes autônomos. Esse é um exemplo de que nós estamos modificando a questão do crime continuado.
ConJur — O Código Penal vai ficar maior ou menor?
Dipp — Mesmo tirando os tipos penais que nós não mais consideramos ofensivos a sociedade, aperfeiçoando inclusive crimes cibernéticos, os crimes contra a instituição financeira que tem hoje normas penais em branco complementadas por outras normas, e outras, haverá um acréscimo. Mesmo com a limpeza que se faça, vai ter um acréscimo. Mas benéfico. O Código Penal será o centro do sistema penal brasileiro.
“Mesmo com a limpeza que se faça, haverá um acréscimo. Mas benéfico. O Código Penal será o centro do sistema penal brasileiro”, garante o ministro do Superior Tribunal de Justiça. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, que contou com a colaboração de perguntas enviadas pelo promotor de Justiça André Luís Alves de Melo, promotor em Minas Gerais, o ministro mostrou o quão polêmico é o texto.
Nada escapou: são ampliadas as hipóteses de aborto, permitida a ortotanásia, descriminalizadas condutas atípicas. Por outro lado, a comissão propõe penas mais rigorosas para crimes financeiros e tipifica o terrorismo. Outro ponto polêmico é a criminalização do enriquecimento ilícito. Já depois da entrevista, a comissão aprovou a criminalização da violação das prerrogativas dos advogados. O texto aprovado foi proposto pelo advogado criminalista Técio Lins e Silva, que faz parte do grupo.
De acordo com Dipp, a comissão partiu de duas premissas. A primeira foi não deixar de lado nenhum tabu. “Teríamos de enfrentar todas as questões necessárias, independentemente de seu potencial de causar polêmica. Nem se fosse para chegar a determinado ponto e reconhecer que certo tipo penal não seria oportuno de ser criado ou modificado”, afirmou o ministro. A segunda diretriz foi fazer do Código Penal o centro do sistema penal brasileiro.
Como diz o ministro, o essencial é adaptar o Código Penal à Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais no âmbito penal dos quais o Brasil é signatário. “O Código Penal tem 72 anos. Alguns brincam que já deveria ter sido atingido pela aposentadoria compulsória”, brincou. Do texto, que Dipp pretende entregar entre o final de maio e o começo de junho, pode-se esperar objetividade.
A comissão não se rendeu a propostas populistas. Segundo Gilson Dipp, houve mais de 2,5 mil manifestações de pessoas com sugestões feitas pelo site do Senado — 90% delas pedindo o endurecimento de penas. Esse, contudo, não é o caminho. “É possível endurecer algumas coisas, mas tem que haver alguma concorrência de todos os órgãos de segurança pública para aplacar a sensação de impunidade, senão nada adianta. O aumento de pena não é garantia de punição”.
Leia a entrevista
ConJur — Quando a comissão entregará ao Senado o anteprojeto de lei de reforma do Código Penal?
Gilson Dipp — A previsão é 25 de maio. Pode ocorrer de precisarmos de mais alguns dias, mas o fato é que entregaremos o projeto antes do recesso do Congresso Nacional.
ConJur — Quais os parâmetros adotados pela comissão para a reforma?
Dipp — O primeiro foi que nenhum tabu seria deixado de lado. Partimos do pressuposto de que teríamos de enfrentar todas as questões necessárias, independentemente de seu potencial de causar polêmica. Nem se fosse para chegar a determinado ponto e reconhecer que certo tipo penal não seria oportuno de ser criado ou modificado. O objetivo da comissão é, em primeiro lugar, adaptar o Código Penal à Constituição de 1988 e aos tratados e convenções internacionais no âmbito penal dos quais o Brasil é signatário. O Código Penal tem 72 anos. Alguns brincam que já deveria ter sido atingido pela aposentadoria compulsória.
ConJur — Há um trabalho de consolidação das leis penais?
Dipp — Essa foi a segunda diretriz, fazer do Código Penal o centro do sistema penal brasileiro, principalmente na parte especial. Nesse período, foram aprovadas 140 leis especiais ou extraordinárias tratando de matéria penal, de crimes. Mais de 50 modificaram pontualmente o Código Penal. E dois terços dessas pouco mais de 50 leis foram sancionados depois da Constituição de 1988. Isso revela a necessidade de atualização do Código. Um dos objetivos é deixar no Código Penal apenas as condutas que são realmente lesivas à sociedade. Uma parte da comissão fez o levantamento de todas as leis penais para esse trabalho ser bem realizado.
ConJur — Há exemplos de leis muito defasadas?
Dipp — A lei que define crimes de colarinho branco, por exemplo, é completamente defasada, mal feita. As penas previstas são muito pequenas. Tanto que há vários condenados por esses crimes, mas ninguém preso. As penas são prestação de serviço e multa séria. Mas como as penas são pequenas, podem ser substituídas por restritivas de direitos. Mas, ainda na parte de consolidação, estamos trazendo para o Código Penal a lei dos crimes ambientais, de lavagem de dinheiro, a que tipifica organizações criminosas, a de abuso de poder, as que definem crimes de trânsito. Outro trabalho é o de reapreciar todos os tipos penais existentes e a necessidade de criação de tipos novos. Essa é a política.
ConJur — Além de reformular, consertar distorções é um trabalho importante, não?
Dipp — Sim. É necessário observar desproporções. Por exemplo, a lei que foi criada após aquele caso das pílulas anticoncepcionais que não funcionaram.
ConJur — O caso das pílulas de farinha...
Dipp — Este. Criaram um tipo muito amplo que se enquadra como crime hediondo. Hoje, a falsificação de uma pomada para a pele ou a alteração de um componente de produto cosmético pode fazer a pessoa ser condenada a uma pena mais grave do que aquela pessoa que pratica um homicídio. Essas distorções estão sendo corrigidas.
ConJur — Houve consultas à sociedade?
Dipp — Sim. Fizemos, por exemplo, uma audiência pública no Tribunal de Justiça de São Paulo, no Salão dos Passos Perdidos. Muita gente participou. Desde instituições como OAB, Defensoria Pública, Ministério Público, IBCrim até organizações não governamentais e movimentos organizados da sociedade civil. Havia associações de direitos dos homossexuais, movimentos em favor do aborto e contra, houve vaias e aplausos durante as manifestações. Uma audiência muito produtiva. A sociedade se entusiasmou.
ConJur — Os senhores propõem mudanças em relação ao aborto?
Dipp — Aumentamos a possibilidade do aborto legal. Hoje é permitido o aborto apenas em caso de estupro e grave risco de vida da mãe. Substituídos grave risco de vida da mãe por grave risco à saúde, o que amplia as hipóteses. E permitimos a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos mesmo antes da decisão do Supremo. O aborto continua tipificado como crime, mas as hipóteses de aborto legal foram ampliadas.
ConJur — Ampliadas quanto? Além destas que o senhor citou, há outras hipóteses?
Dipp — Pela proposta, será permitido o aborto não só de fetos anencéfalos, mas de todo feto portador de graves e irreversíveis anomalias atestadas com segurança por laudos médicos fundamentados, evidentemente. É prevista também a possibilidade do aborto decorrente de técnica de reprodução assistida e não consentida. E mais, que certamente gerará polêmica, há a previsão de que em toda gravidez poderá ser feito o aborto até a décima segunda semana nos casos em que a mãe não tenha a menor condição de criar os filhos.
ConJur — Condições financeiras?
Dipp — Não só financeiras. Principalmente condição psicológica, atestada por médicos, psiquiatras e psicólogos. Aí me perguntam: “Mas como atestar isso?”. Reportagens recentes mostraram mulheres grávidas em cracolândias, perdidas, com a mãe do ex-companheiro correndo atrás da nora e ela fugindo para a cracolândia. Há condições? Mas cabe ao Parlamento dar a última palavra. O que estamos elaborando é um anteprojeto que será entregue ao Senado. É no Congresso que se dará a grande discussão.
ConJur — Mas o senhor vê a possibilidade de pontos polêmicos como esses serem aprovados?
Dipp — Estamos sempre conversando para que haja possibilidade de ser aprovado. Não estamos fazendo um trabalho teórico. É um trabalho visando à facilitação do trabalho do Parlamento em discutir, para que seja aprovada a maior parte do que propusermos. Há senadores que são nossos interlocutores.
ConJur — Há mais mudanças polêmicas como essas?
Dipp — Tipificamos a eutanásia como homicídio autônomo e não como causa de atenuante. É um homicídio privilegiado. Não é a redação definitiva, mas vai dar uma clareza maior ao tema. Eutanásia é o homicídio privilegiado que é aquele em que o autor do crime age por piedade, a pedido do paciente terminal, imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave, irreversível, atestado por dois médicos. Esse atestado não é um atestado puro e simples, deve ser um laudo maior.
ConJur — Qual a pena?
Dipp — Seria a pena menor, porque é um homicídio privilegiado com atenuante. A proposta é prisão de 3 a 6 anos. E mais o importante, uma excludente de crime que é a ortotanásia. Na redação da comissão, ficou assim: Não constitui crime deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários ou artificiais, quando a morte, previamente atestada por dois médicos, for eminente e inevitável, desde que haja pedido do paciente terminal ou na sua impossibilidade, o descendente, ascendente, companheiro, cônjuge, um irmão.
ConJur — Ou seja, me deixe morrer em paz...
Dipp — Não quero métodos dolorosos que estão mantendo artificialmente minha vida. Se o sujeito não tem possibilidade de viver e quer passar os últimos dias no carinho da família, por que impedi-lo? O ministro Menezes Direito, que era praticamente um médico, dizia: “Não quer que alguém morra? Põe em uma UTI”.
ConJur — O Supremo vem reinterpretando o Código Penal ao longo dos anos. Exemplos mais recentes são as decisões sobre a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos e a permissão da Marcha da Maconha. O anteprojeto absorverá esses direcionamentos do Supremo?
Dipp — Claro que estamos levando em conta as posições do Supremo. Mas eu garanto que nós vamos ser muito mais avançados do que o próprio Supremo. Depois, é com o Parlamento.
ConJur — Até porque o Parlamento é o lugar para ser avançado, não é?
Dipp — É lá o foro apropriado. A grande vantagem dessa comissão é que foi criada dentro do Senado. O presidente (do Senado) José Sarney parece ter a intenção de encerrar o mandato com revisão de toda a legislação.
ConJur — Como a comissão trata a questão do tráfico de drogas?
Dipp — Queremos deixar bem claro o que é o traficante, o que é o dependente e o que é o usuário. O caso do dependente, hoje, não é crime, mas tem pena. Qual é a pena? É o tratamento médico, psicológico, que o juiz determina. Mas em varas do interior, até em capitais, o juiz dá uma advertência e solta o sujeito sem tutela do médico, sem acompanhamento psicológico ou internação se for o caso. Nós estamos tratando disso, mas estes pontos ainda não estão definidos.
ConJur — O terrorismo será tipificado?
Dipp — Sim. Basicamente é causar terror à população mediante carregar explosivos, explodir estações, estádios, promover incêndios. Tudo aquilo que cause um verdadeiro terror na população. Apesar de o Brasil ter assinado vários tratados internacionais, eu sempre fui contra a tipificação porque me parecia uma pressão desmedida dos Estados Unidos. Mas nesse momento em que o Brasil terá grandes eventos como Olimpíadas, Copa das Confederações, Copa do Mundo, em que pelo menos três países que sofreram na carne a barbárie do terrorismo estarão presentes, como Estados Unidos, Espanha e Reino Unido, achei razoável discutir a tipificação. Até já existia uma lei que descrevia atos de terrorismo, mas que ninguém quer ressuscitar, que é a Lei de Segurança Nacional. Então, na aprovação do terrorismo, imediatamente a comissão propõe a revogação da Lei de Segurança Nacional.
ConJur — Por que existe resistência para a tipificação do terrorismo?
Dipp — O temor é a criminalização dos movimentos sociais. Leia-se: MST. E aí eu propus uma cláusula de exclusão com o seguinte teor: não consistem atos de terrorismo aqueles atos sociais ou reivindicatórios mediante ações compatíveis com a sua finalidade. Houve discussão, mas foi aprovado pela comissão. O que queremos deixar claro é que o tipo penal não possa ser empregado para punir os movimentos sociais. Pode, em tese, o movimento social praticar ato terrorista, mas não se praticar atos que correspondam à sua finalidade.
ConJur — O Código Penal vai englobar a lei de execução penal?
Dipp — Na parte geral, estamos modificando a lei de execução. Criamos um regime alternativo de progressão da pena. A progressão se dará com um sexto, um terço, três quintos e até metade da pena dependendo do crime, da reincidência etc. Estamos modificando totalmente, esclarecendo, a chamada dosimetria da pena. Grande parte dos pedidos de Habeas Corpus questiona a dosimetria da pena. Então, é uma aritmética que ninguém sabe fazer. Vamos deixar uma margem maior para o juiz, inclusive o juiz da execução poderá em certos casos modificar a pena fixada na sentença condenatória.
ConJur — A comissão tentará estabelecer critérios mais objetivos?
Dipp — Mais objetivos, mais claros, mais inteligíveis. Se o Código Penal for mais claro, sem essa colcha de retalhos de várias leis, ele poderá ser aplicado com justiça.
ConJur — Quando o Código Penal foi aprovado, em 1940, a expectativa de vida do brasileiro era de 55 ou 60 anos. Hoje é de 73 anos. Partindo dessa premissa, pessoas defendem que se aumente também o tempo máximo de prisão que é permitido no Brasil, que hoje é de 30 anos. A comissão trata disso?
Dipp — Chegamos a debater. Houve propostas para que aumentasse para 40 ou 50 anos. Mas não chegamos a deliberar. A tendência é manter os 30 anos, com uma progressão mais rígida dependendo da gravidade do crime. Dados mostram que houve mais de 2,5 mil manifestações de pessoas com sugestões feitas no site do Senado. E 90% das manifestações populares são pelo endurecimento das penas. É a questão da segurança pública e a sensação de impunidade. Então, o que o povo pensa? Tem que endurecer! Mas não adianta. É possível endurecer algumas coisas, mas tem que haver alguma concorrência de todos os órgãos de segurança pública para aplacar a sensação de impunidade, senão nada adianta. Polícias mais bem aparelhadas, polícias técnicas, salários melhores de policiais, preparo, Ministério Público mais eficaz, Judiciário mais ágil. Isso é um complexo de fatores que gera a impunidade. O aumento de pena não é garantia de punição. O aumento da criminalidade se dá pela certeza da impunidade.
ConJur — A comissão irá prestigiar a reparação de dano no Código Penal? Há alguma previsão, por exemplo, de exigir reparação de dano para progressão de regime?
Dipp — Sim. Por exemplo, no regime aberto, não haverá mais casa de albergado. A progressão já começará com a prestação de serviços à comunidade ou reparação de danos. A reparação de dano está prevista como pena, inclusive, perda de bens, perda de valores, reparação de dano ao erário. Nós estamos atentos aos crimes não só contra o patrimônio privado, que é a tônica do Código de 1940, mas também contra o patrimônio público. Eu propus trazer para o Código a responsabilização penal da pessoa jurídica.
ConJur — Não só nos crimes ambientais?
Dipp — Não. As penas serão compatíveis com a natureza da pessoa jurídica. Por exemplo, a suspensão de atividades, multas pesadas, proibição de contratar serviço público. Alguns dizem que essas penas são aplicadas no âmbito administrativo. Sim. Mas o estigma penal, a condenação criminal, vai pesar muito mais. E aí é questão de a Administração Pública ser mais rígida nas contratações.
ConJur — Delação ou confissão premiada é matéria para o Código Penal?
Dipp — Não. Trouxemos para o Código o conceito de organização criminosa, que é o tipo penal. Delação premiada, infiltração de agente policial em ação criminosa, ação controlada, tudo isso são métodos modernos de investigação, meios de prova. Isso fica na lei especial. Para diferenciar do tipo penal antigo de formação de bando e quadrilha, nós usamos um termo mais moderno, que é associação criminosa, que não tem a periculosidade da organização criminosa, que é aquela que está na convenção da ONU contra o crime organizado, a Convenção de Palermo.
ConJur — E transação penal?
Dipp — Também não é matéria do Código Penal. Existe a Lei 9.099 e nós não vamos mexer nela. Porque se nós trouxermos tudo para o Código, faremos um calhamaço sem razão.
ConJur — A comissão trata da exploração de jogos sem autorização, como o Jogo do Bicho?
Dipp — Hoje, sabemos que a contravenção penal do Jogo do Bicho e das máquinas caça-níqueis, que eram figuras folclóricas em 1940, objeto de marchinhas carnavalescas e inofensivas, hoje são a grande mola propulsora para a prática de outros crimes muito mais graves, que não são contravenções penais, como caso de lavagem de dinheiro, homicídios, corrupção e tráfico de entorpecentes. Hoje, tudo gira em torno do jogo do bicho e dos jogos de azar, principalmente das máquinas caça-níqueis. Então, temos que tipificar. O texto proposto é mais ou menos o seguinte: Explorar jogos de azar que não tem autorização legal ou regulamentar. A pena é de um a dois anos de prisão, mas sempre acrescida, no caso concreto, das penas de outros crimes conexos. Porque eles não são praticados isoladamente. Estamos pensando também na tipificação penal das milícias. Haverá uma audiência pública no Rio de Janeiro, em 14 de maio, e vamos tentar discutir esses temas.
ConJur — Como tipificar as milícias?
Dipp — Milícia é apropriação de um espaço público privado, por agentes públicos ou ex-agentes públicos, para tirar proveito econômico. E o que explora? Tudo aquilo que o poder público explora. Distribuição de gás, TV a cabo, outros serviços básicos. Exploram mediante o terror e disputam os seus espaços, os seus territórios.
ConJur — À bala, não?
Dipp — À bala. Tem que criminalizar? Eu acho que sim. A proposta é fazer um Código Penal moderno. De hoje projetado para o futuro. Um código que tem que ter aplicação em uma sociedade plural. Ele pode e deve valer para o executivo da Avenida Paulista e para o ribeirinho do Amazonas.
ConJur — A comissão quer criminalizar o enriquecimento ilícito?
Dipp — Há discussões nesse sentido. Alguns dizem que não é necessário porque existe a Lei de Improbidade, que é civil, apesar de os tipos serem todos tipicamente penais. O enriquecimento ilícito é o patrimônio adquirido pelo funcionário público, lato sensu, desproporcional à sua remuneração e que ele não possa fundamentadamente justificar.
ConJur — Mas isso não é a inversão do ônus da prova?
Dipp — Não. O agente público, o funcionário público, todos nós temos de apresentar, desde que entramos no serviço público e todos os anos, a nossa declaração de renda. Isso é contra prova? Não. Eu tenho que, todos os anos, apresentar ao STJ a minha declaração de renda e a minha evolução patrimonial. E se eu não puder justificar eu poderei ser punido. A Receita federal não me convoca para pedir explicações se for necessário? Não exige recibos ou os cheques que comprovem determinadas movimentações? O princípio é o mesmo. São as PPEs – Pessoas Politicamente Expostas. Isso é uma determinação de convenções internacionais. Pessoas que sejam politicamente expostas, como governadores, deputados estaduais, federais, membros do Ministério Público, do Poder Judiciário, devem ter suas contas monitoradas. Certos atos têm que ser autorizados pela autoridade competente. Eu não sei, até hoje, se é o gerente do banco ou se é o presidente do banco. Mas esse monitoramento já existe. Eu estou tentando minar a resistência. Tem de tipificar porque isso é uma convenção internacional. O Senado aprovou por Decreto Legislativo a aplicação da convenção. Estamos tentando redigir um tipo penal palatável.
ConJur — Crimes cibernéticos serão tipificados?
Dipp — Estamos discutindo tipos específicos para isso. Fui relator no STJ de quase todos os pedidos de Habeas Corpus decorrentes daquela operação Cavalo de Tróia. Os acusados entravam nas contas bancárias, falsificavam a senha e tiravam o dinheiro das contas. Nas denúncias, nas ações penais, e depois eu vi isso nos pedidos de HC, sempre tipificavam como estelionato ou furto qualificado mediante fraude. Irá chegar um momento em que esses tipos penais não vão atender à demanda de crimes cibernéticos sofisticados. Por exemplo, invasão ao site da Presidência da República. Qual o tipo penal? No Distrito Federal tiraram os sites de diversos bancos do ar ao mesmo tempo. Como tipificar isso penalmente? Temos que criar um tipo específico para esses casos. Até quando o estelionato ou o furto qualificado vão servir para isso?
ConJur — O que mais o anteprojeto prevê?
Dipp — Devemos colocar na parte geral do Código os princípios gerais para crimes eleitorais. E também colocar na parte geral da aplicação das penas os crimes militares. No STJ, há muitos pedidos de Habeas Corpus contra tribunais militares de estados e até do Superior Tribunal Militar, que não permitem a progressão de regime em matéria militar. Houve uma sugestão para criar no Código Penal um capitulo próprio dos crimes impropriamente militares e dos crimes propriamente militares. Ou seja, vai ser uma revolução que acaba com o Código Militar. Só não sei se haverá tempo para concluir tudo isso.
ConJur — Homofobia será tipificada como crime?
Dipp — Não foi apresentado ainda um arcabouço do tipo penal, mas não é mais possível que sejam aplicados outros tipos penais pré-existentes aos crimes homofóbicos, que muitas vezes não se amoldam e não dão a dignidade da proteção à liberdade sexual. Nós ainda não temos o tipo formatado. Alguns propõem colocar como agravante. Eu não concordo. Como disse antes, esse Código não é só para hoje. É para o futuro.
ConJur — A comissão irá tratar da Lei Seca? Consertar o erro legislativo do Congresso?
Dipp — Tratamos disso. Tiramos a dosagem específica para caracterizar a embriaguez. O texto está assim: Conduzir veículo automotor na via pública sobre influencia do álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial, não à segurança de outrem, mas à segurança viária.
ConJur — Ou seja, foi pego dirigindo bêbado, cometeu crime, independentemente do dano.
Dipp — Prisão de um a três anos, sem prejuízo da responsabilização por qualquer outro crime cometido. A infração poderá ser demonstrada mediante qualquer meio de prova no direito admitido. Isso quer dizer, prova testemunhal, o depoimento da autoridade policial, o exame clínico, o exame médico, o vídeo...
ConJur — Há uma tendência de aumentar as ações penais condicionadas à representação da vítima?
Dipp — Não. Nos crimes contra a honra, a ação continua condicionada à representação da vitima. Aumentamos a pena porque achamos que a dignidade, a honra, é um bem constitucionalmente protegido. Ainda há a possibilidade de desistência da ação mediante retratação ou até reparação de danos. E como pena para o crime contra a honra, além do aumento, multa violenta.
ConJur — Crime continuado vai permanecer no código penal? Criminosos, profissionais, que cometem dezenas de crimes em intervalo curto de tempo, vão responder por um crime com aquela previsão de aumento de um sexto da pena?
Dipp — A parte geral, apesar de estar adiantada, não foi totalmente debatida ainda. Mas vamos aos exemplos. A figura do estupro nós estamos estabelecendo estupro anal, vaginal e oral. Bem definidos. E se os três forem praticados, haverá um aumento de pena. Excluímos o crime continuado neste caso. Nós estamos colocando figuras específicas e, se forem praticados juntos, haverá aumento da pena. São crimes autônomos. Esse é um exemplo de que nós estamos modificando a questão do crime continuado.
ConJur — O Código Penal vai ficar maior ou menor?
Dipp — Mesmo tirando os tipos penais que nós não mais consideramos ofensivos a sociedade, aperfeiçoando inclusive crimes cibernéticos, os crimes contra a instituição financeira que tem hoje normas penais em branco complementadas por outras normas, e outras, haverá um acréscimo. Mesmo com a limpeza que se faça, vai ter um acréscimo. Mas benéfico. O Código Penal será o centro do sistema penal brasileiro.
Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 6 de maio de 2012
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