Polícia Judiciária e Estado
Democrático de Direito
Publicado em 09/2013. Elaborado em
06/2013.
Analisam-se as funções exercidas pelo
delegado de polícia e as prerrogativas por ele usufruídas no desempenho da
atividade de investigação criminal.
Resumo: Neste artigo
abordaremos alguns aspectos relacionados à Polícia Judiciária no atual Estado
Democrático de Direito. Daremos enfoque às funções exercidas pelo delegado de
polícia e as prerrogativas por ele usufruídas no desempenho da atividade de
investigação criminal, destacando que referidas atribuições e prerrogativas
visam dar plena eficácia às normas constitucionais que consagram direitos e
garantias fundamentais e instrumentalizam a efetivação do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: 1. Polícia
Judiciária; 2. Estado Democrático de Direito; 3. Princípios constitucionais.
1 INTRODUÇÃO
Em uma abordagem contemporânea de
processualística, o processo penal deve ser visto não como simples formalidade
legal, mas sim como instrumento de efetivação de direitos fundamentais.
A investigação criminal, por sua vez,
como parte integrante do sistema de persecução penal, também deve seguir nessa
mesma linha, ganhando amplitude na efetivação de garantias constitucionais e
desvelando-se como verdadeira ferramenta de proteção da dignidade humana.
Disso decorre a exclusividade da
atividade investigativa nas mãos da Polícia Judiciária e as consequentes
prerrogativas funcionais de que dispõem seus órgãos, tudo para que a
investigação criminal transcorra de forma isenta e eficaz, impedindo que ocorra
desequilíbrio no sistema acusatório vigente.
2 PRINCÍPIO DO
DELEGADO DE POLÍCIA NATURAL
No sistema jurídico brasileiro, à
Polícia Judiciária é atribuído o poder estatal de investigação criminal,
conforme dispõe a Constituição Federal[1]. Os delegados de polícia
de carreira são, portanto, os detentores da competência administrativa
exclusiva para a presidência do inquérito policial e para a prática dos demais
atos de polícia judiciária.
Dessa premissa constitucional decorre o
princípio do delegado de polícia natural, corolário do princípio do devido
processo legal, consistente na garantia do indivíduo de ser investigado por um
delegado de polícia quando suspeito da prática de um ilícito penal, com
observância da Constituição Federal e das regras previstas na legislação
infraconstitucional.
Para Cezar Roberto Bitencourt (2007, p.
11)
A investigação criminal pelas Polícias
Civis (federal e estaduais), como regra, é imposição do princípio da
legalidade, sob a ótica administrativa, segundo o qual a Administração Pública
somente poderá agir diante de texto de lei que a autorize. Ademais, é direito
do cidadão e da sociedade saber, com antecedência, a quem incumbe investigar
determinada infração penal, respaldado pela Constituição e pelas leis
infraconstitucionais. Esse direito é decorrência natural da segurança jurídica,
que deve ser preservada nos Estados Democráticos de Direito.
Decorrência lógica desse princípio
também é a garantia do investigado de contar com uma atuação imparcial por
parte do órgão investigador.
Levando em conta a atual sistemática
constitucional, que alça o inquérito policial à posição de instrumento de
proteção do indivíduo contra acusações infundadas, outorgando ao delegado de
polícia a atribuição de tornar efetiva essa garantia, a esta autoridade também
se estendem as hipóteses de suspeição e impedimento previstas no Código de
Processo Penal para os magistrados e os órgãos auxiliares da Justiça[2].
Portanto, o artigo 107 do Código de
Processo Penal[3], que veda a arguição de suspeição da autoridade
policial, deve ser submetido a uma interpretação conforme a Constituição
Federal de 1988, que impõe o entendimento de que em qualquer momento da
investigação criminal pode ser suscitado o impedimento ou a suspeição do
delegado de polícia para atuar naquele caso concreto, como forma de garantir
uma atuação imparcial e resguardar os direitos fundamentais do investigado.
3 PRERROGATIVAS
FUNCIONAIS
Para a correta aplicação do Direito no
exercício das atividades de polícia judiciária, indispensável se mostra que o
delegado de polícia disponha das mesmas prerrogativas funcionais inerentes às
demais funções essenciais à Justiça, quais sejam: inamovibilidade,
vitaliciedade, irredutibilidade dos vencimentos e independência funcional.
Não se pode admitir que os superiores
hierárquicos, administrativamente constituídos, influenciem nas decisões
tomadas pela autoridade policial no exercício das atividades de polícia
judiciária, impondo-lhe determinações. A edição de recomendações para atuação
uniforme dos órgãos é admissível, mas a influência direta nas decisões
jurídicas é inconcebível, em face do desempenho de uma atividade que lida
diretamente com a liberdade individual.
Por conta disso, foi promulgada a
Emenda Constitucional nº 35, de 03 de abril de 2012, que fez inserir no artigo
140 da Constituição do Estado de São Paulo o reconhecimento da carreira de
delegado de polícia como jurídica, declarando a sua independência funcional no
desempenho das atividades de polícia judiciária[4].
Consagrou-se, portanto, uma situação
jurídica que a própria sistemática da Constituição Federal já havia
consolidado: a de que o delegado de polícia ocupa a posição de agente político
e que os órgãos que compõem a Polícia Judiciária exercem função essencial à
administração da Justiça.
Na lição do saudoso mestre Hely Lopes
Meirelles (1995, p. 198)
Agentes políticos são os componentes do
Governo em seus primeiros escalões, para o exercício de atribuições
constitucionais. Atuam com ampla liberdade funcional e possuem prerrogativas
próprias, não estando sujeitos, em regra, a controle hierárquico, submetendo-se
tão-somente aos limites constitucionais e legais estabelecidos. Exercem funções
governamentais, judiciais e quase-judiciais, atuando com independência nos
assuntos de sua competência. São remunerados por subsídio. São exemplos de
agentes políticos os chefes do Poder Executivo e seus auxiliares diretos, os
parlamentares, os magistrados, os membros do Ministério Público, os membros dos
Tribunais de Contas e os representantes diplomáticos.
As prerrogativas funcionais da
vitaliciedade e da inamovibilidade também se mostram imprescindíveis para o
regular exercido das atividades de polícia judiciária. A primeira porque exige
decisão judicial para perda do cargo e a segunda porque impede a remoção
compulsória e injustificada da autoridade policial para proteger interesses
daqueles que se veem ameaçados pela investigação criminal.
A Lei Federal nº 12.830/2013, que
disciplina e investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia,
reconhece uma espécie de inamovibilidade relativa da autoridade policial,
permitindo sua remoção apenas por intermédio de ato administrativo fundamentado[5].
Infelizmente a vitaliciedade ainda não
foi estendida aos delegados de polícia, perdendo o legislador a grande
oportunidade de dar um passo além e imprimir maior eficácia e segurança
jurídica ao inquérito policial.
Por outro lado, há necessidade, também,
de que a instituição Polícia Judiciária passe a dispor de autonomia
administrativa e financeira, haja vista a relevância da atividade desenvolvida
por seus órgãos, pois lidam diretamente com o status libertatis e o status
dignitatis do indivíduo.
Por isso, deve essa instituição ser
afastada de qualquer ingerência política, para que não reste prejudicada a
eficiência da investigação e não se corra o risco torná-la um instrumento
voltado a fins pessoais ou puramente eleitoreiros.
Quiroga Lavié (apud MORAES, 2003, p. 497)
ensina que um órgão com autonomia funcional e financeira é um órgão extrapoder,
ou seja, não depende diretamente de nenhum dos Poderes do Estado, sendo que
seus membros, para preservação dessa autonomia, não podem estar submetidos às
determinações de nenhuma autoridade pública.
Especificamente em relação à autonomia
financeira, Hely Lopes Meirelles (1995, p. 203) esclarece que se trata da
[...] capacidade de elaboração da
proposta orçamentária e de gestão e aplicação dos recursos destinados a
promover as atividades e serviços do órgão titular da dotação. Essa autonomia
pressupõe a existência de dotações que possam ser livremente administradas,
aplicadas e remanejadas pela unidade orçamentária a que foram destinadas. Tal
autonomia é inerente aos órgãos funcionalmente independentes, como o são o
Ministério Público e o Tribunal de Contas, os quais não poderiam realizar
plenamente as suas funções se ficassem na dependência de outro órgão
controlador de suas dotações orçamentárias.
Resta clara, portanto, a necessidade de
se outorgar autonomia administrativa e financeira à Polícia Judiciária, com a
atribuição de dotação orçamentária específica a ser gerida diretamente pela
própria instituição. Só assim, a atividade de investigação criminal estaria
isenta de qualquer interferência externa, consolidando a sua vocação garantista
no atual Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, verifica-se que o
posicionamento topográfico da Polícia Judiciária no texto constitucional não é
o mais adequado. É que, atuando seus órgãos na persecução penal e auxiliando
diretamente do Poder Judiciário, deveria esta figurar dentre as instituições
que desempenham funções essenciais à Justiça, no capítulo reservado a elas pelo
legislador constitucional.
Descabida é a argumentação de que a
Polícia Judiciária compõe, exclusivamente, a estrutura da segurança pública do
Estado. As funções exercidas pelos delegados de polícia são eminentemente
jurídicas, como ressaltado anteriormente, e assim devem ser tratadas.
As instituições voltadas precipuamente
à manutenção da ordem pública, agindo de forma preventiva e atuando na
repressão imediata dos delitos, são componentes da estrutura de segurança
pública do Estado e devem ser realmente tratadas em capítulo específico no
texto constitucional.
Contudo, a Polícia Judiciária e os
demais órgãos que atuam na persecução penal desempenham a função primordial de
perseguir o criminoso até a final condenação, exercendo uma forma de repressão
mediata guiada pelos princípios constitucionais fundamentais.
Não se nega aqui que a Polícia
Judiciária também exerce papel relevante para manutenção da ordem pública, mas
nem por isso se coloca na condição de órgãos de segurança pública, porque não
lhe é afeta a missão de manter e restabelecer a ordem de forma imediata.
Importante destacar que buscamos
exaltar aqui as qualidades do nosso sistema de persecução penal, em oposição a
modelos alienígenas que se mostram deficientes, pois consolidamos no Brasil um
sistema de controle mútuo que evita a concentração de poderes em um só órgão e
minimiza o risco de torná-lo onipotente e arbitrário.
Roberto Maurício Genofre (2001, p. 9)
bem sintetiza essa visão:
Não vemos a exclusão do Poder
Judiciário na investigação policial como compatível com os preceitos maiores da
legislação pátria, pois qualquer diminuição do sistema de controle e
fiscalização nesta seara representa uma perda substancial na luta pela defesa
dos direitos impostergáveis do cidadão. Acresça-se, também, a visão dos
documentos internacionais (Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto
de San José da Costa Rica, 1969; Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos – Nova Iorque, 1966; Carta dos Direitos Humanos da Assembléia Geral
das Nações Unidas, 1992; Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Homens e
das Liberdades Fundamentais – Roma, 1950) que Canotilho denomina de ‘direito
internacional individualmente referenciado’, tendo por objetivo alicerçar uma
nova definição de vinculariedade na proteção dos direitos do homem.
É com base nessas premissas
democráticas que podemos estruturar um sistema de investigação criminal
eficiente e que tenha por objetivo primordial tornar efetivo o princípio da
dignidade da pessoa humana.
4 OBRIGATORIEDADE E
INDISPONIBILIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL
O artigo 5º do Código de Processo Penal
dispõe que o inquérito será iniciado de ofício pelo delegado de polícia, ou em
decorrência de requisição judicial ou oriunda do Ministério Público ou, ainda,
por requerimento apresentado pela vítima ou seu representante legal[6].
O referido dispositivo legal traduz um
preceito mandamental ao expressar que o “inquérito policial será iniciado”,
impondo, assim, um poder-dever ao delegado de polícia de deflagrar o
procedimento investigatório no momento que tomar conhecimento, por qualquer
meio, de um fato supostamente criminoso e da existência de indícios mínimos de
sua possível autoria.
Essa regra é decorrência lógica do
princípio da obrigatoriedade da ação penal, extensivo à fase extrajudicial da
persecução penal.
A discricionariedade do delegado de
polícia durante a presidência do inquérito policial restringe-se, portanto, à
análise jurídica do fato para formação de sua opinio delicti e à conveniência e
oportunidade para a prática de determinados atos de investigação, no que tange
ao momento e à sua forma de execução.
Não há discricionariedade, portanto, na
instauração ou não de inquérito policial quando os elementos forem fortes o
suficiente a indicar a prática de um ilícito penal, havendo indicativos mínimos
de sua autoria.
Tudo isso nos leva a concluir que não
há nenhum respaldo legal para adoção do chamado “procedimento de investigação
preliminar”. O delegado de polícia, no desempenho de sua atividade jurídica,
deve avaliar o fato levado ao seu conhecimento e verificar se existem indícios
mínimos de que se trata de um ilícito penal e se também há algum indicativo
sobre quem o tenha praticado.
Caso a autoridade tenha dúvida acerca
da existência de alguma infração penal ou mesmo da autoria, poderá, no máximo,
verificar direta e informalmente se há viabilidade para instauração do
inquérito policial. Não pode existir procedimento investigatório distinto do
inquérito, não previsto em lei e sem acompanhamento dos demais órgãos que atuam
na persecução penal.
Não havendo, então, elementos
suficientes a justificar a formalização da investigação, devido à atipicidade
do fato, à ausência de punibilidade e/ou inviabilidade do procedimento, deve o
delegado de polícia arquivar a notícia crime apresentada. Esse entendimento
decorre da interpretação do próprio texto constitucional[7] (CF,
art. 144, § 4º) e da redação dada ao artigo 4º do Código de Processo Penal, que
atribuem ao delegado de polícia a função de presidir a apuração dos ilícitos
penais e sua respectiva autoria.
Quando falamos em tipicidade,
punibilidade e viabilidade, estamos tratando dos elementos que compõem o
conceito de justa causa no processo penal. Desse modo, só existe justa causa
para instauração do inquérito policial se há tipicidade do fato a ser apurado,
se este fato é punível penalmente e se existe qualquer indicativo, por mais
remoto que seja, do caminho a ser seguido para apuração de sua autoria.
Nesse sentido, totalmente inviável se
mostra mobilizar toda estrutura de polícia judiciária para apurar um fato que
nem ao menos em tese se apresente como criminoso, ou em que a punibilidade já
esteja extinta ou, ainda, cuja autoria nem remotamente esteja indicada, pois
levaria ao desvio de foco daqueles casos que apresentam possibilidade de
esclarecimento, em prejuízo aos princípios da eficiência e da economia
processual, que norteiam a atividade de persecução penal[8].
Por consequência lógica do que foi aqui
abordado e em decorrência de disposição expressa do artigo 17 do Código de
Processo Penal, vemos que incide na fase investigatória o denominado princípio
da indisponibilidade, pois o inquérito policial instaurado não pode ser
arquivado ex officio pelo delegado de polícia, devendo esta autoridade levá-lo
a termo e remetê-lo a juízo para a apreciação do magistrado e do órgão do
Ministério Público[9].
5 DISCRICIONARIEDADE NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
Discricionariedade não se confunde com
liberdade absoluta, arbitrariedade ou abuso, mas se revelada como independência
de atuação de uma autoridade pública dentro dos limites que lhe são impostos
pelo Direito.
É importante frisar que o delegado de
polícia, como agente político, detentor de independência funcional, dispõe de
discricionariedade no desempenho de suas atividades de polícia judiciária. É
livre para decidir juridicamente sobre as medidas a serem adotadas para
apuração de um ilícito penal e sua respectiva autoria, valendo-se do arcabouço
de normas que compõe o sistema jurídico.
Tomando conhecimento de um fato
supostamente delituoso, por cognição direita, indireta ou coercitiva, deve o
delegado de polícia efetivar a sua avaliação jurídica e formar a sua convicção,
de forma livre e fundamentada, concluindo se realmente trata-se de um ilícito
penal, se é caso de adoção de alguma providência de polícia judiciária e qual a
medida processual a ser adotada naquele caso concreto.
A prisão cautelar formalizada no auto
de prisão em flagrante só é possível de ser decretada diante da existência de
estado flagrancial; já a instauração de inquérito policial ou lavratura de
termo circunstanciado de ocorrência decorre da avaliação jurídica sobre a
existência de justa causa para a deflagração da investigação criminal; e a
elaboração de boletim de ocorrência, por se tratar de um documento
administrativo voltado a formalizar a notícia-crime, só deve ocorrer nos casos
em que o fato relatado caracterize, ao menos em tese, uma infração penal.
Sendo assim, cabe ao delegado de
polícia, e somente a ele, de forma motivada e independente, decidir sobre a
lavratura de auto de prisão em flagrante, a instauração de inquérito policial,
a lavratura de termo circunstanciado de ocorrência e a elaboração de boletim de
ocorrência, exercendo o seu poder discricionário de avaliação jurídica dos
fatos que lhe são submetidos à apreciação.
6 EXCLUDENTES DE
ILICITUDE E PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Outro ponto de grande relevância a ser
abordado neste artigo, e que enseja grande polêmica na comunidade jurídica, é o
relativo à possibilidade de o delegado de polícia avaliar a incidência das
excludentes de antijuridicidade e do princípio da insignificância na fase
extrajudicial da persecução penal, deixando de autuar em flagrante ou de indiciar
alguém que tenha praticado uma conduta sob o manto de uma descriminante ou um
ato absolutamente irrelevante para o direito penal.
Existem aqueles que sustentam não ser
possível essa análise jurídica pelo delegado de polícia, pois ensejaria um
juízo de avaliação vertical dos elementos probatórias, com necessária invasão
do mérito da causa, o que é atribuição exclusiva do juiz e não da autoridade
policial.
Por outro lado, há os que defendem essa
possibilidade, argumentando que ao delegado de polícia é atribuída a função de
apurar as infrações penais e suas respectivas autorias, formando seu juízo de
probabilidade sobre a prática do delito, atividade esta que passa
necessariamente pela análise da presença dos elementos que compõem o conceito
analítico de crime, quais sejam: tipicidade, ilicitude e punibilidade.
No desempenho desse múnus jurídico,
cabe à autoridade policial formar a sua convicção sobre a existência ou não do
ilícito penal e adotar as medidas processuais cabíveis, atuando de forma
discricionária, balizada pelos ditames do Direito.
O Direito Penal é considerado a ultima
ratio do sistema jurídico e tem seu campo de incidência limitado às graves
lesões ou ameaças de lesões a bens jurídicos eleitos como os mais importantes
para a sociedade, alçados a essa condição pelo núcleo fundamental da
Constituição de um Estado.
Luigi Ferrajoli (2011, p. 69, tradução
livre) destaca dez vetores axiológicos fundamentais que funcionam como
limitadores do poder de punir do Estado em face do direito de liberdade do
indivíduo. Dentre esses axiomas destacamos dois que diretamente guardam relação
com o ponto tratado, são eles os princípios “da necessidade ou da economia do
Direito Penal” e “da ofensividade ou da lesividade do evento”.
Na linha desse pensamento, o Estado só
estaria autorizado a invadir a liberdade individual, valendo-se do Direito
Penal, quando realmente fosse necessária essa interferência extrema,
criminalizando apenas condutas graves que não possam ser retribuídas com a
incidência de outros ramos do Direito, tornando penalmente relevantes, de forma
subsidiária e fragmentária, apenas ofensas ou lesões que atinjam
exacerbadamente os bens jurídicos protegidos.
Assenta-se nesse ponto a tese de
existência de uma tipicidade material no Direito Penal, pautada na ideia de que
somente as condutas que realmente atingem de forma grave o bem jurídico
tutelado são passíveis de encontrar subsunção à norma penal incriminadora,
caracterizando-se como um injusto penal.
Esse entendimento respalda a chamada
teoria da tipicidade conglobante, desenvolvida por Eugenio Raúl Zaffaroni
(2002, p. 392), para quem “[...] a conduta, pelo fato de ser penalmente típica,
necessariamente deve ser também anti-normativa”.
Para essa teoria, a conduta só será
considerada típica quando também se revelar ilícita. Portanto, a tipicidade
estritamente legal mostra-se irrelevante penalmente, pois a simples subsunção
de um comportamento aos elementos descritivos da lei penal não é suficiente
para torná-lo típico, necessitando de uma análise de sua antijuricidade, a fim
de encerar a chama tipicidade conglobante.
Sendo assim, as condutas praticadas sob
o manto de uma excludente de ilicitude, por estarem em consonância com o
ordenamento jurídico, em decorrência da existência de tipos permissivos
legalmente previstos, não são penalmente típicas e não ensejam a
responsabilização penal.
No mesmo sentido segue a interpretação
sobre a aplicação do princípio da insignificância, pois não havendo tipicidade
material na conduta daquele que pratica o “crime de bagatela”, impossível se mostra
a sua responsabilização penal, por inexistência de injusto punível.
Esclarece Francisco de Assis Toledo
(1999, p. 184) que
Welzel considera que o princípio da
adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É
discutível que assim seja. Por isso Claus Roxin propôs, a introdução, no
sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual
atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do princípio
da insignificância, que permite na maioria dos tipos, excluir danos de pouca
importância.
O delegado de polícia, ao avaliar uma
conduta supostamente criminosa, deve exercer um juízo de tipificação material,
levando em conta a relevância penal e a ilicitude do comportamento, aplicando,
eventualmente, o princípio da insignificância e a teoria conglobante do tipo.
José Henrique Guaracy Rebêlo (2000, p.
45) esclarece que
[...] apesar de o artigo 17 do CPP
determinar que a autoridade policial não pode mandar arquivar os autos do
inquérito policial, os delegados de polícia paulista há muito vêm aplicando o
Princípio da Insignificância. Queiroz sugere que a falta de amparo legal para a
aplicação do princípio não invalida e nem compromete o comportamento da
autoridade policial, uma vez que a insignificância é detalhe que se mede pelo
conhecimento direto e imediato da realidade social do plantonista ou do titular
da unidade policial, por dispor de condições jurídicas amplas de
dimensionamento e de verificação do mal do processo em face do mal da pena.
Portanto, a autoridade policial, que na solidão dos pretórios policiais compõe
as partes em conflito, não age segundo ditames do direito alternativo, mas sim
assentada no pragmatismo jurídico, sem ofensa ao ordenamento vigente, em
comportamento que o coloca ao lado da Justiça e do Direito.
Portanto, concluindo que o fato sobre o
qual incide uma excludente de ilicitude ou princípio da insignificância não
pode ser visto como crime, por carecer de tipicidade material, pode o delegado
de polícia deixar de autuar em flagrante ou indiciar alguém que tenha agido em
legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou
exercício regular de direito – mesmo que de forma putativa –, ou aquele que
tenha praticado o chamado “crime de bagatela”.
Agindo dessa forma, a autoridade
policial não estará promovendo o arquivamento da investigação, mas apenas
deixando de instaurar o inquérito policial por ausência de justa causa e, nos
casos em que decidir por instaurá-lo – em face da complexidade jurídica do fato
–, estará deixando de realizar a prisão cautelar ou indiciar o suspeito, em
face da inexistência de ilícito penal.
Também não se sustenta o argumento de
que o delegado de polícia, nesses caos, estaria adentrando no mérito da causa e
usurpando atribuição inerente ao poder jurisdicional; simplesmente está
efetivando uma análise jurídica sobre a tipicidade do fato, para decidir sobre
a aplicação da norma processual penal de forma a não violar direitos
fundamentais do investigado e, por conseguinte, resguardar o princípio maior da
dignidade da pessoa humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos neste escrito a importância de se
zelar por um sistema processual garantista no contexto da justiça criminal
brasileira. Disso decorre a necessidade de se observar os princípios
constitucionais durante o transcorrer do inquérito policial.
Somente com esta visão contemporânea da
atividade investigativa é que será possível afastar os fantasmas do passado,
que tanto influenciaram o nosso texto constitucional, atando as mãos da Polícia
Judiciária, restringindo seu poder e acarretando o disparate da realidade
atual, na qual não conseguimos acompanhar a evolução social e combater os males
que nela se proliferaram.
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Autor
Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, Mestrando em Direito
Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público do
Estado de São Paulo, Bacharel em Direito pela Universidade Paulista, Professor
Universitário das Disciplinas de Direito Penal e Direito Processual Penal e
Professor da Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo.
Informações sobre o texto
Como citar este texto
(NBR 6023:2002 ABNT):
COELHO, Emerson Ghirardelli. Polícia
judiciária e Estado Democrático de Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3733, 20 set. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25353>. Acesso em: 20 set.
2013.
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