Os meios de comunicação são
indispensáveis para a vitalidade do Estado democrático (e participativo) de
direito. Sua atuação, no entanto, segue – muitas vezes – o viés
populista. A mídia é condição necessária para a existência das liberdades bem
como de outros valores nucleares do sistema republicano de governo. Só podemos
pensar numa opinião pública vigorosa, atenta às atividades dos governantes, com
uma mídia independente e vigilante (Monzón: 2005, p. 17). De qualquer modo, nada
é absoluto no plano jurídico. A mídia também tem limites jurídicos, éticos,
morais etc.
Nem toda mídia é populista. Não
há dúvida que se pode subscrever a afirmação de que apenas alguns segmentos da
mídia adotam os padrões do populismo penal, procurando construir a realidade
criminal de forma a atender seus objetivos de interferir no desenho das
políticas de reação (e prevenção) do delito ou (ilegitimamente) no desfecho
judicial de algum caso concreto.
Exemplo de mídia populista.
Vejamos o que afirmou um editorial do Correio Braziliense (23.05.12, p. 14): “A
cidadania levou ontem (frente ao exercício do direito ao silêncio pelo acusado
Cachoeira na CPI) um tapa no rosto e se descobriu impotente, abandonada”. A
linguagem é terrorífica. Coloca toda população na posição de vítima. O exercício
do direito constitucional ao silêncio constitui (para esse populismo midiático)
uma grave “ofensa”, um “mal” que deve ser extirpado do ordenamento jurídico
brasileiro. Coisa do diabo e não de Deus (consoante Maffesoli). Aliás, a
proposta final do editorial foi a seguinte: “É hora de colocar uma vírgula no
direito que garantiu o silêncio de Cachoeira: se o crime é contra o bem público,
o acusado não pode se calar impunemente ante a autoridade. Elementar”. O que
prega (é de verdadeira pregação fanática que se trata) é a extirpação, pura e
simples, da garantia ao silêncio, que constitui cláusula pétrea no nosso sistema
constitucional, reveladora de que evoluímos do sistema inquisitivo da Idade
Média para um sistema constitucional dotado de razoabilidade. Do ponto de vista
jurídico, aberração maior é impossível.
Postura midiática antipopulista.
Todo criminoso merece cadeia, em julgamento sumário e sem respeito às
garantias? Vejamos o que disse o editorial da Folha de S. Paulo de 01.09.12, p.
A2: “A pena privativa de liberdade, como esta Folha tem
assinalado várias vezes, só deveria ser aplicada nos casos em que o condenado
traz real ameaça à segurança pública”. Analisando o caso mensalão sublinhou:
“Com todas as delongas de que se cercou, e com minúcias e divergências capazes
de testar a paciência até dos próprios ministros, o julgamento do mensalão tem
posto à prova esse duplo simplismo – tanto o de quem não se importa com a
condenação quanto o dos que a querem a qualquer preço. Se há muito de exemplar
nas decisões até aqui alcançadas, não são menores as lições que o processo pode
trazer – no que assegura de respeito às garantias constitucionais, ao debate
civilizado e ao exame de cada caso com rigor, mas sem tendenciosidade nem
paixão”.
As duas coisas não são
incompatíveis.
O Estado conta com mil maneiras racionais e
válidas de provar os delitos organizados, inclusive dos poderosos econômicos,
que não podem mesmo ficar impunes. Mas não podemos abandonar o velho e bom
discurso formulado por Beccaria de que o direito penal constitui também garantia
do réu contra os abusos do Estado.
O populismo midiático e fanático se equivoca
redondamente quando, para reivindicar mais eficiência na persecução penal,
sugere o fim do Estado democrático de direito assim como o corte dos direitos e
garantias constitucionais. Não se pode cobrir um corpo descobrindo outro, quando
há cobertor para os dois. A proteção do Estado (punindo os criminosos)
é tão fundamental quanto a proteção contra os abusos do Estado. O
populismo penal midiático incorre no mesmo erro antes cometido por alguns
criminólogos críticos que ignoravam a função protetiva (e civilizatória) dos
direitos e das garantias. É preciso que o populismo penal midiático resolva, de
uma vez por todas, seu dilema entre a barbárie e a civilização.
A problemática do delito não é algo alheio ou
raro na vida da população brasileira (é muito difícil que alguém não tenha sido
ou não tenha um conhecido que tenha tido uma experiência vitimizatória). Desde
que a mídia se apoderou do rentável e lucrativo discurso criminológico o assunto
nunca mais saiu da pauta do cotidiano das televisões, dos jornais, dos políticos
etc. Minuto a minuto o tema, sendo recorrente, volta para os diálogos,
telejornais, manchetes, projetos legislativos, leis novas etc. O sentimento de
temor (medo) e de desproteção, pelo que dizem as pesquisas, aumenta a cada
dia.
O inconsciente (ou imaginário) coletivo tem
algumas convicções formadas sobre a matéria. A primeira, evidentemente, é a de
que nenhum crime pode ficar sem castigo. O castigo seria imprescindível não só
para “vingar” o que foi feito (fato ofensivo), senão também para evitar que o
criminoso repita o seu ato. O medo da reincidência constitui uma das fontes do
desejo da retribuição. A população, em geral, no entanto, em tempos de populismo
punitivo, não postula apenas o castigo devido, sim, cada vez mais reivindica
castigos mais duros, “mão dura” contra o crime, fim da impunidade, corte de
direitos e garantias fundamentais, retrocessos à Idade Média etc. (uma coisa é o
castigo, outra bem diferente é o que pretende o populismo punitivo).
Se perguntássemos para a população qual é o
tratamento mais adequado para quem sofreu um aneurisma, claro que o cidadão
comum diria: “não tenho a mínima ideia” Com certeza, ademais, nunca diria que um
curandeiro seria a pessoa indicada para solucionar o problema citado. Sobre o
mundo da medicina complexa o indivíduo comum não costuma opinar, por falta de
conhecimento específico. Não é isso o que acontece, no entanto, no campo da
criminalidade. Todo mundo, incluindo, portanto, os jornalistas, tem sempre uma
receita (infalível) para a “cura” desse “mal”. Prisão, castigo duro, humilhação,
degradação do preso, abolição das garantias penais, tortura, extermínio etc.
Tudo que possa servir de instrumento de “vingança” vem à cabeça do cidadão comum
(daí a demanda forte por pena de morte, prisão perpétua etc.).
Ocorre que essa “receita” não vem dando certo
(sobretudo no Brasil). Somos o campeão mundial na taxa de encarceramento (de
1990 a 2011, 472% de aumento) mas, ao mesmo tempo, experimentamos um dos maiores
incrementos nos índices de homicídio (9,6 mortes para cada 100 mil habitantes em
1979, contra 27,3, em 2011). Estamos prendendo muito (com frequência
desnecessariamente), mas nem a violência nem a criminalidade diminuíram. Ao
contrário!
*LFG – Jurista e professor. Fundador da Rede de
Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e co-editor do
atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de
Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me: www.professorlfg.com.br.
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