LUIZ FLÁVIO GOMES25 DE SETEMBRO DE 2012 ÀS 16:58
A decisão do Supremo vai ser revisada pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos, com eventual chance de prescrição de todos os crimes, em
razão de, pelo menos, dois vícios procedimentais seríssimos que a poderão
invalidar fulminantemente
Muitos brasileiros estão acompanhando e aguardando o final do
julgamento do mensalão. Alguns com grande expectativa enquanto outros, como é o
caso dos réus e advogados, com enorme ansiedade. Apesar da relevância ética, moral,
cultural e política, essa decisão do STF – sem precedentes - vai ser revisada
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com eventual chance de
prescrição de todos os crimes, em razão de, pelo menos, dois vícios
procedimentais seríssimos que a poderão invalidar fulminantemente.
O julgamento do STF, ao ratificar com veemência vários valores
republicanos de primeira linhagem - independência judicial, reprovação da
corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos, retidão
ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc.
-, já conta com valor histórico suficiente para se dizer insuperável. Do ponto
de vista procedimental e do respeito às regras do Estado de Direito, no
entanto, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano,
incluindo, especialmente, o do Brasil, apresentam-se como deploráveis.
No caso Las Palmeras a Corte Interamericana mandou processar
novamente um determinado réu (na Colômbia) porque o juiz do processo era o
mesmo que o tinha investigado anteriormente. Uma mesma pessoa não pode ocupar
esses dois polos, ou seja, não pode ser investigador e julgador no mesmo
processo. O Regimento Interno do STF, no entanto (art. 230), distanciando-se do
padrão civilizatório já conquistado pela jurisprudência internacional,
determina exatamente isso. Joaquim Barbosa, no caso mensalão, presidiu a fase investigativa
e, agora, embora psicologicamente comprometido com aquela etapa, está
participando do julgamento. Aqui reside o primeiro vício procedimental que
poderá dar ensejo a um novo julgamento a ser determinado pela Corte
Interamericana.
Há,
entretanto, um outro sério vício procedimental: é o que diz respeito ao chamado
duplo grau de jurisdição, ou seja, todo réu condenado no âmbito criminal tem
direito, por força da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8, 2, h),
de ser julgado em relação aos fatos e às provas duas vezes. O
entendimento era de que, quem é julgado diretamente pela máxima Corte do País,
em razão do foro privilegiado, não teria esse direito. O ex-ministro Márcio
Thomaz Bastos levantou a controvérsia e pediu o desmembramento do processo logo
no princípio da primeira sessão, tendo o STF refutado seu pedido por 9 votos a
2.
O ministro Celso de Mello, honrando-nos com a citação de um
trecho do nosso livro, atualizado em meados de 2009, sublinhou que a
jurisprudência da Corte Interamericana excepciona o direito ao duplo grau no
caso de competência originária da corte máxima. Com base nesse entendimento, eu
mesmo cheguei a afirmar que a chance de sucesso da defesa, neste ponto, junto
ao sistema interamericano, era praticamente nula.
Hoje, depois da leitura de um artigo (de Ramon dos Santos) e de
estudar atentamente o caso Barreto Leiva contra Venezuela, julgado bem no final
de 2009 e publicado em 2010, minha convicção é totalmente oposta. Estou seguro
de que o julgamento do mensalão, caso não seja anulado em razão do primeiro
vício acima apontado (violação da garantia da imparcialidade), vai ser revisado
para se conferir o duplo grau de jurisdição para todos os réus, incluindo-se os
que gozam de foro especial por prerrogativa de função.
No Tribunal Europeu de Direitos Humanos é tranquilo o
entendimento de que o julgamento pela Corte Máxima do país não conta com duplo
grau de jurisdição. Mas ocorre que o Brasil, desde 1998, está sujeito à
jurisprudência da Corte Interamericana, que sedimentou posicionamento contrário
(no final de 2009). Não se fez, ademais, nenhuma reserva em relação a esse
ponto. Logo, nosso País tem o dever de cumprir o que está estatuído no art. 8,
2, h, da Convenção Americana (Pacta sunt servanda).
A Corte Interamericana (no caso Barreto Leiva) declarou que a
Venezuela violou o seu direito reconhecido no citado dispositivo internacional,
"posto que a condenação proveio de um tribunal que conheceu o caso em
única instância e o sentenciado não dispôs, em consequência [da conexão], da
possibilidade de impugnar a sentença condenatória." A coincidência
desse caso com a situação de 35 réus do mensalão é total, visto que todos eles
perderam o duplo grau de jurisdição em razão da conexão.
Mas melhor que interpretar é reproduzir o que disse a Corte:
"Cabe observar, por outro lado, que o senhor Barreto Leiva poderia ter
impugnado a sentença condenatória emitida pelo julgador que tinha conhecido de
sua causa se não houvesse operado a conexão que levou a acusação de várias pessoas
no mesmo tribunal. Neste caso a aplicação da regra de conexão traz consigo a
inadmissível consequência de privar o sentenciado do recurso a que alude o
artigo 8.2.h da Convenção."
A decisão da Corte foi mais longe: inclusive os réus com foro
especial contam com o direito ao duplo grau; por isso é que mandou a Venezuela
adequar seu direito interno à jurisprudência internacional: "Sem prejuízo
do anterior e tendo em conta as violações declaradas na presente sentença, o
Tribunal entende oportuno ordenar ao Estado que, dentro de um prazo razoável,
proceda a adequação de seu ordenamento jurídico interno, de tal forma que
garanta o direito a recorrer das sentenças condenatórias, conforme artigo 8.2.h
da Convenção, a toda pessoa julgada por um ilícito penal, inclusive aquelas que
gozem de foro especial."
Há um outro argumento forte favorável à tese do duplo grau de
jurisdição: o caso mensalão conta, no total, com 118 réus, sendo que 35 estão
sendo julgados pelo STF e outros 80 respondem a processos em várias comarcas e
juízos do país (O Globo de 15.09.12). Todos esses 80 réus contarão com o
direito ao duplo grau de jurisdição, que foi negado pelo STF para outros réus.
Situações idênticas tratadas de forma absolutamente desigual.
Indaga-se: o que a Corte garante aos réus condenados sem o
devido respeito ao direito ao duplo grau de jurisdição, tal como no caso
mensalão? A possibilidade de serem julgados novamente, em respeito à regra
contida na Convenção Americana, fazendo-se as devidas adequações e acomodações
no direito interno. Com isso se desfaz a coisa julgada e pode eventualmente
ocorrer a prescrição.
Diante dos precedentes que acabam de ser citados parece muito
evidente que os advogados poderão tentar, junto à Comissão Interamericana, a
obtenção de uma inusitada medida cautelar para suspensão da execução imediata
das penas privativas de liberdade, até que seja respeitado o direito ao duplo
grau. Se isso inovadoramente viesse a ocorrer – não temos notícia de nenhum
precedente nesse sentido -, eles aguardariam o duplo grau em liberdade.
Conclusão: por vícios procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da
eventualmente autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência
internacional, a mais histórica de todas as decisões criminais do STF pode ter
seu brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado.
Luiz
Flávio Gomes, 54, é doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG, foi
promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a
2001). Seu site: www.professorlfg.com.br
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