segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Casos práticos de uma Delegacia de Polícia: legítima defesa X arma irregular


 
Num momento de distração do criminoso, a vítima de roubo saca sua pistola e mata o assaltante com um tiro. Após, apresenta-se espontaneamente na Delegacia de Polícia. Detalhe: a arma não estava regularizada nos termos do Estatuto do Desarmamento.
Introdução
Ao longo da nossa carreira como Delegado de Polícia no Estado de São Paulo, já nos deparamos com inúmeros casos extremamente interessantes sob o aspecto jurídico. Diante dessas situações, percebemos claramente a importância da Autoridade de Polícia Judiciária para um Estado Democrático de Direito.
O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da Justiça dentro da persecução penal e os casos que lhes são apresentados possuem uma carga jurídica impossível de ser negada.
Dentro desse contexto, iniciamos com este estudo uma série de artigos que relatam casos reais registrados rotineiramente em uma Delegacia de Polícia e que demandam uma análise jurídica mais detida por parte dos operadores do Direito. Advertimos, entretanto, que as posições aqui adotadas constituem apenas o nosso entendimento sobre determinado assunto, não tendo a pretensão de determinar a verdade absoluta sobre um fato. Aliás, esse é o ponto mais fascinante do Direito, uma vez que podemos encontrar diversas opiniões para um mesmo caso.

Caso Prático[1]
Fulano de Tal entra numa agência bancária e faz um saque no valor de três mil reais. Dois criminosos percebem a retirada do dinheiro e começam a segui-lo pelas ruas. Em determinado momento, Fulano de Tal entra numa agência de viagens, sendo que, nesse instante, os criminosos o abordam e anunciam o assalto.
Um dos criminosos se apodera do dinheiro sacado por Fulano e foge enquanto o outro comparsa permanece no interior da agência de viagens com as vítimas sob a mira de seu revólver. Ocorre que, em um momento de distração do criminoso, o proprietário do estabelecimento saca uma pistola calibre .380 que trazia em sua cintura e dispara uma única vez contra ele. Alvejado, o assaltante foge por alguns metros, mas cai morto na rua. Após, o proprietário da agência se apresenta espontaneamente na Delegacia de Polícia mais próxima.
Detalhe importante: O proprietário da agência de viagens tinha a propriedade da arma, mas ela não estava regularizada nos termos do Estatuto do Desarmamento.

Enquadramento Típico
Primeiramente, devemos analisar as condutas praticadas pelos criminosos. Assim, não resta dúvida de que os fatos se amoldam perfeitamente à figura típica do delito de roubo circunstanciado ou majorado, prevista no artigo 157, §2°, incisos I e II, do Código Penal, uma vez que os agentes, atuando em concurso e unidade de desígnios, subtraíram coisa alheia mediante grave ameaça exercida por meio do emprego de arma de fogo.
No que se refere à conduta do proprietário da agência de viagens, nos parece claro que ele agiu acobertado por uma causa excludente da ilicitude, qual seja, a legítima defesa (art.23, inc.II e art.25, do CP). Isto, pois, ele efetuou um disparo de arma de fogo contra o assaltante com o objetivo de repelir uma injusta e iminente agressão à sua vida e de terceiros. Sendo assim, embora típica, sua conduta não é ilícita, o que acaba por afastar a caracterização do crime previsto no artigo 121, do Código Penal. Portanto, o proprietário não deveria ser autuado em flagrante por esta conduta.
Contudo, não podemos olvidar o fato de que ele trazia em sua cintura uma arma de fogo irregular. Antes de analisar essa questão, lembramos que o Estatuto do Desarmamento permite que o proprietário de um estabelecimento mantenha uma arma de fogo nas suas dependências. Desse modo, se a arma estivesse regularizada, também restaria afastado o crime previsto no artigo 12 do Estatuto (posse irregular de arma de fogo).
Consignamos, todavia, que essa permissão dada pelo Estatuo do Desarmamento não significa que o proprietário de um supermercado, por exemplo, possa andar pelas suas dependências carregando uma arma de fogo em sua cintura. Tal conduta não caracteriza a posse de arma de fogo, mas, sim, o seu porte, mesmo que no interior de seu estabelecimento. Nesse sentido, entendemos que o ato praticado pelo proprietário da agência de viagens se enquadra no artigo 14 do Estatuto do Desarmamento (porte irregular de arma de fogo de uso permitido).
Insta salientar que, mesmo que o proprietário da agência apenas mantivesse a arma guardada em seu estabelecimento, como a posse não está de acordo com a determinação legal, ele responderia pelo crime previsto no artigo 12. Subsidiamos esse entendimento no fato de que a arma foi mantida no local durante o dia todo e provavelmente durante outros dias, o que colocou em risco o bem jurídico protegido pelo mencionado tipo legal, haja vista que a segurança pública foi afetada pela posse irregular de uma arma de fogo. Imaginem quantas pessoas passaram pelo local antes do roubo!
Vejam, caros leitores, se não ocorresse o roubo que deu ensejo a reação do proprietário da agência, caso ele fosse surpreendido na posse da arma de fogo irregular, ele responderia normalmente pelo crime do artigo 12. O fato de ele ter agido em legítima defesa não altera em nada a sua situação, pois durante o tempo em que ele manteve a arma irregular na sua agência a segurança da coletividade foi comprometida.
Frente ao exposto, concluímos que o proprietário da agência de viagens deveria ser preso em flagrante pelo delito previsto no artigo 14 do Estatuto do Desarmamento. Nem se fale que a prisão não poderia ser efetuada pela sua apresentação espontânea na Delegacia de Polícia, pois ele só o fez devido ao ocorrido, o que descaracteriza a espontaneidade do ato.
Essa é a nossa visão sobre este caso. E a sua?

Nota
[1] Ocorrência apresentada na central de flagrantes da 1ª Seccional da cidade de São Paulo.

Autor

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Delegado de Polícia Civil em SP, Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
SANNINI NETO, Francisco. Casos práticos de uma Delegacia de Polícia: legítima defesa X arma irregular. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3385, 7 out.2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22731>. Acesso em: 8 out. 2012.




Um comentário:

  1. Bom acho que ele deve ser enquadrado pelo Art 14, penso ainda que se ele não tivesse reagido o "meliante" poderia ceifar a vida dele e de outrem.

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