terça-feira, 23 de outubro de 2012

‘A (des)valorização do inquérito policial’, Ana por Cláudia Alves da Silva


1. Considerações Iniciais

É possível dizer que o crime existe desde a Antiguidade, pois, ante ao pensamento, sintetizado, de Thomas Hobbes, o homem é lobo do próprio homem. Nesse passo, o filósofo inglês afirma que “mesmo dispondo de certa capacidade de comunicação, para dar a conhecer umas às outras seus desejos e outras afecções, mesmo assim carecem daquela arte das palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mau, e o que é mau sob a aparência do bem” (HOBBES, 2002, p. 130).

Ainda na mesma linha de raciocínio, só que um pouco menos radical, é de bom alvitre lembrar o dizer do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, no sentido de que o homem nasce bom, a sociedade que o corrompe, registrando dessa forma que os homens não são naturalmente inimigos, pois a relação das coisas que produz a guerra, não a dos homens (ROUSSEAU, 1996, p. 16).

Quão bom seria se a sociedade vivesse em paz e a criminalidade estivesse fora da órbita social, entretanto, isso não é o real. Desta feita, é a polícia que está nas ruas deparando-se de segundo em segundo com situações calamitosas, as quais requerem repressão.
2. O Inquérito Policial

“O Inquérito Policial é um conjunto de atos praticados pela função executiva do Estado com o escopo de apurar a autoria e materialidade de uma infração penal, dando ao Ministério Público elementos necessários que viabilizem o exercício da ação penal” (RANGEL, 2010, p.74).

Empós todas as diligências empregadas pela autoridade policial e sua equipe, os autos de IP serão conclusos à autoridade policial para relatório. Tal matéria está disposta no artigo 10, §§ 1º, 2º e 3º do CPP.

A esse despeito, é o entendimento de José Geraldo da Silva (2000, p. 243), ao afirmar que “o relatório não deve ser um simples índice das diligências levadas a termo pela polícia judiciária, pois não estaria de acordo com o que a lei chama de relatório minucioso”.

É explicitamente desarrazoado sistematizarmos o entendimento voltado estritamente em “calar a boca” da autoridade policial, a qual efetivamente participou da investigação criminal, que bateu frente a frente com o crime, que a priori observou as oitivas e as sistematizou, justamente para encontrar a lapidação perfeita no ordenamento jurídico pátrio.

Pode-se pensar que o entendimento adquirido durante a investigação criminal é belicoso, todavia como bem destacado pelo general chinês Sun Tzu, “ainda que se tenha ouvido falar que atitudes precipitadas são imprudentes, não acredito que a esperteza esteja associada a decisões demoradas”.
3. A (des)valorização do Inquérito Policial

“Faze-me justiça, ó Deus, e pleiteia a minha causa contra a nação contenciosa; livra-me do homem fraudulento e injusto” Salmos 43:1, Bíblia Sagrada. Desde os tempos remotos, a sociedade tem clamado por justiça, mas algumas pessoas, além de a clamarem, preocuparam-se em questionar: o que é a justiça afinal?

Em Ética a Nicômacos, Aristóteles, falando sobre a justiça corretiva, a que se subsume melhor ao espírito da justiça criminal, o filósofo registra que “a justiça é a observância do meio termo, mas não de maneira idêntica à observância de outras formas de excelência moral, e sim porque ela se relaciona com o meio termo, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos (ARISTÓTELES, 2001, p.101)”.

Verificando-se a exposição de motivos do CPP, vê-se que o espírito do código referido é de obter o equilíbrio entre o direito do Estado à punição dos criminosos e o direito do indivíduo às garantias e segurança de suas liberdades. Nessa vertente, tem-se o ponto de equilíbrio em uma disposição de justiça, a saber, o meio termo pregado por Aristóteles no destaque anterior.

Para que se concretize a justiça penal tão almejada pela sociedade, faz-se necessário, muito mais que o “da mihi factum, dabo tibi jus”, é fazer com que o magistrado diga o direito corretamente. Para que isso se concretize, é extremamente válido que todos os operadores do direito trabalhem no sentido de lograr-se êxito em um só fim colimado, a saber, a aplicação do sensato e saudável direito penal, sem o cometimento de erros crassos.

No que concerne ao campo jurídico, a discrepância entre a teoria e a prática sabe-se que é um abismo. Não é só na área jurídica que isso ocorre, mas como justificado na literatura da escritora goiana Cora Coralina, “na prática, a teoria é outra” (CORALINA, 2001, p. 174).

Nessa envergadura, e já partindo para o objetivo do estudo, o inquérito policial tem sido um procedimento desvalorizado, pois o Ministério Público, bem como o Poder Judiciário, a advocacia, dentre outros, não tem concedido o valor que é devido ao IP.

O controle exercido pelo parquet é externo, conforme já consagrado pela Constituição Federal (art. 129, VII, da CF/88), o que não lhe permite ordenar o que a polícia deve ou não fazer, quem deve ou não ser ouvido, que prova deve ou não ser produzida.
Por outro lado, verifica-se que o Poder Judiciário se torna “refém” do parecer ministerial, considerando que em alguns momentos o magistrado não possui ferramentas legais capazes de irem contra o que requer o MP. À título de exemplo, vejamos o que ocorre nos casos em que o parquet manifesta pelo arquivamento dos autos de inquérito. O juiz não pode fazer mais nada do que remeter os autos ao procurador-geral, e, se esse insistir no pedido de arquivamento, o juiz estará obrigado a atender (art. 28, CPP). Há também aqueles que não analisam o caso concreto de maneira eficaz.

Já a advocacia, apesar da nobreza profissional que lhe é peculiar, tem por vezes desvalorizado em demasia o inquérito policial. Verifica-se que alguns advogados tem sido coniventes com seus clientes na prática criminosa e, como já conhecem o direito, traçam a melhor forma de se furtarem à ação policial. Mas isso, é claro, são para os patronos desprovidos de ética profissional, os quais não cumprem as regras deontológicas gizadas no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.

Assim, o que pensar de um Ministério Público que determine que agentes policiais, efetivamente, perguntem para os vizinhos se o investigado é traficante (conforme o estudo de caso exposto em sua integralidade no trabalho monográfico)? Ou daquele que requer, incessantemente, provas do tipo midiático “CSI” ou com recursos totalmente exóticos, totalmente a mercê da polícia brasileira? Pois bem, não há resposta/respaldo legal para tais indagações.

Conforme bem registra Moraes (1986, p. 293), com suas palavras sempre vivas, sem a Polícia Judiciária, a Justiça Criminal estaria manietada. Nessa seara, talvez não pudesse expressar a segunda sem a existência da primeira. Ao rechaçar o alegado, o autor prossegue dizendo que “a lei processual não pode fugir à realidade. Na sistemática do Direito brasileiro, sem a Polícia Judiciária realizando os inquéritos, raríssimas seriam as ocasiões em que os infratores penais prestariam contas à Justiça Criminal (MORAES, 1986, p. 243)”.

Assim sendo, verifica-se que o IP não é mero procedimento administrativo “dispensável”, mas sim fruto de um trabalho de equipes que se empenharam para chegarem aos deslindes de casos que muitas vezes são complexos, os quais retiram sono, tempo e vida social dos investigadores para construírem um inquérito de qualidade, merecedor de valorização quando chegar às mãos do MP e do magistrado.

À lapidar nesse sentido, importante a exegese expendida por Bruno Fontenelle e Rafael Souza, ambos delegados federais, ao exposarem que “o inquérito policial é, na imensa maioria das vezes, indispensável para a formação da convicção do Ministério Público nos casos em que ainda não haja elementos suficientes para o oferecimento da ação penal” (CABRAL; SOUZA, 2012, p. 213).
4. Conclusão

Nessa vertente, o inquérito policial é extremamente imprescindível à efetivação da justiça criminal. Assim, as instituições lhe devem valorizar, pois muitos policiais tem se jogado de “corpo inteiro” em investigações que veem desbaratinando diversas facções criminosas que têm disseminado o mal em meio à sociedade, e, consequentemente, ao materializar o feito no caderno policial, não têm percebido que os outros operadores do direito estão com a mesma missão, qual seja, de pôr a criminalidade sob o comando de uma boa, lídima e augusta Justiça.

Vê-se que por vezes o trabalho presidido pela autoridade policial é desvalorizado, pois todo o labor empreendido na investigação é submetido à cognição sumária do Ministério Público em tomar frente da situação e, sem conhecer o “campo minado” em que a polícia colocou seus “pés”, requisita diligências inócuas ou requer o arquivamento dos autos que poderiam gerar um processo criminal capaz de condenar corriqueiros infratores da lei.

A legislação brasileira ainda não disciplinou bem o inquérito policial, e, pelo que parece, não tende a discutir tal procedimento na proporção de sua importância. A própria doutrina renega o IP, mas, felizmente, é chegada a hora de doutrinadores que, com muita dificuldade, estão rompendo o direito processual penal tradicional, esforçando-se para construir o nosso direito mais justo e ordeiro.

Posto isso, infelizmente, o IP é um procedimento desvalorizado hodiernamente.

Todavia, é de imensa imprescindibilidade para a efetivação da justiça criminal, pois somente com uma investigação de qualidade formalizada será possível o Estado cumprir com seu dever perante a sociedade, a saber, o bem-estar social.

Sobre a aurora
Ana Cláudia Alves da Silva
DELEGADOS.com.br
Revista da Defesa Social & Portal Nacional dos Delegados

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