Criminosos de
colarinho branco que se associarem para desvios e assaltos aos cofres públicos
estarão agora juridicamente nivelados aos PPP (pobres, pretos e prostitutas)
que, historicamente, habitam nossas cadeias. A esses temos que agregar o
quinto, que é o “pê” dos policiais.
Em 10 de julho de
2012 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei n. 12.683, de 09 de julho
de 2012, editada para alterar a Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, que
dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores,
sob o pretexto de tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de
“lavagem de dinheiro”.
Com o advento da
predita Lei, a figura principal do crime de lavagem de dinheiro passou a ser
definida do seguinte modo: “Art. 1º. Ocultar ou dissimular a natureza, origem,
localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou
valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
O tipo penal em
estudo é classificado como um “crime complexo”, vez que a objetividade jurídica
tutelada pela norma penal incriminadora, como bem observa GUILHERME DE SOUZA
NUCCI, continua sendo “a ordem econômica, o sistema financeiro, a ordem
tributária, a paz pública e a administração da justiça” (NUCCI, Guilherme de
Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p. 871).
Admite-se figurar
como sujeito ativo do crime de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e
valores, qualquer pessoa (“crime comum”), excluídos os autores ou partícipes
dos crimes, sob pena de violação ao princípio do “non bis in idem” (dupla incriminação
pela mesma circunstância). Em verdade, uma vez condenado por crime antecedente,
não há que se falar em punição pela ocultação do produto ou proveito deste
mesmo crime. Forçoso é concluir que, neste caso, a conduta de “lavagem” é
atípica, tratando-se de mero exaurimento da empreitada criminosa, que deve ser
entendida como única.
Como sujeito passivo
da conduta incriminada, se aflora o Estado, entendido como a pessoa jurídica de
direito público titular dos bens jurídicos tutelados pela norma penal, e
responsável pela ordem econômica, sistema financeiro, ordem tributária, paz
pública e administração da justiça.
Da análise objetiva
do tipo penal em estudo, depreende-se que coexistem dois núcleos ou verbos, a
seguir expostos: (i) “ocultar” – que significa esconder, tornar irreconhecível,
encobrir; e (ii) “dissimular” – que remete à ideia de disfarçar o propósito,
fingir a finalidade. Por se tratar de um tipo misto alternativo, de conteúdo
múltiplo ou variado, se o agente, no mesmo contexto fático, praticar mais de
uma das condutas previstas, ou seja, “ocultar” e “dissimular”, responderá por
crime único, em homenagem ao princípio da alternatividade.
A propósito, o crime
de “lavagem” se desenvolve em três fases definidas: (i) ocultação ou conversão:
trata-se da introdução no sistema financeiro, dos bens, direitos ou valores,
por meio de depósitos bancários, contratos de câmbio de moeda estrangeira,
aquisições de ações ou outros valores mobiliários, contratos de venda e compra
de imóveis etc.; (ii) dissimulação: entendida como a etapa em que são efetuados
diversos negócios jurídicos ou operações financeiras (v.g. transferências de
fundos, movimentações entre contas correntes etc.), com a finalidade de
dificultar a identificação da origem destes bens, direitos ou valores
provenientes de infração penal; (iii) integração: ocorre no momento em que
estes bens, direitos ou valores retornam ao sistema financeiro, com aparência
da legalidade de sua origem, exaurindo-se a empreitada criminosa.
Prosseguindo no
estudo do tipo objetivo, verifica-se que estas condutas devem recair sobre
elementos normativos que guardam íntima relação com os objetos materiais do
crime. Estes elementos normativos foram elencados na seguinte ordem: (i)
natureza – qualidade, gênero ou espécie, o que caracteriza algo; (ii) origem –
procedência, fato que de que provém outro fato, lugar de onde se vem; (iii)
localização – determinado local onde algo pode ser encontrado; (iv) disposição
– colocação, arranjo, emprego ou uso; (v) movimentação – circulação ou mudança
de posição; (vi) propriedade – direito pelo qual um bem pertence a alguém.
Com efeito, conforme
acima afirmado, guardando relação com os elementos normativos supracitados,
foram definidos três objetos materiais do crime de “lavagem”, a seguir
pontuados: (i) bens – objeto material ou imaterial de determinada relação
jurídica; (ii) direitos – situação jurídica que confere ao seu titular a
faculdade de exigir a prestação ou abstenção de determinado ato; (iii) valores
– grau de utilidade dos bens expressos em moeda corrente.
Além disso, os “bens,
direitos ou valores”, com vistas ao perfeito enquadramento típico, devem ser
“provenientes” (vinculados), direta (sem intermediários) ou indiretamente (de
forma dissimulada ou valendo-se de interposta pessoa), de “infração penal”.
Na redação original
da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, para a configuração do crime de “lavagem”,
se exigia a ocorrência de crime antecedente, que deveria encontrar-se listado
no rol exaustivo previsto em seu artigo 1º. A Lei n. 12.683, de 09 de julho de
2012, rompe com este paradigma, ao revogar expressamente todos os incisos que
compunham o elenco taxativo que era previsto neste artigo (incisos I ao VIII).
Mas não é só.
Comumente, as leis penais dos diversos países classificam as “infrações
penais”, levando em consideração a gravidade em abstrato das condutas, em dois
sistemas: tripartido e bipartido. O primeiro sistematiza “infração penal” como
gênero, de que são espécies “crime”, “delito” e contravenção penal (v.g. Código
Penal francês de 1791). O segundo sistema, adotado pela lei penal brasileira,
divide o gênero “infração penal” entre duas espécies: “crime” e “contravenção
penal”. A anterior construção típica do crime previsto no artigo 1º, caput, da
Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, exigia para a sua configuração que os
bens, direitos ou valores, ocultados ou dissimulados, fossem provenientes de
“crime”. Verifica-se que, a antiga redação do dispositivo era mais restrita, na
medida em que exigia como requisito do enquadramento típico do crime de
“lavagem” que os objetos materiais fossem provenientes de “crime”, espécie do
gênero “infração penal”. É dizer: após o advento da Lei n. 12.683, de 09 de
julho de 2012, admite-se para a configuração do crime de “lavagem”, a
vinculação com qualquer crime ou contravenção penal.
Quanto ao tipo
subjetivo, o crime é punido somente a título de dolo, i.e., a vontade livre e
consciente de ocultar ou dissimular bens, direitos ou valores, provenientes de
infração penal. Segundo a doutrina tradicional, trata-se de dolo genérico, uma
vez que o tipo não requer a presença de elemento subjetivo especial.
O crime se consuma
com a ocorrência do “branqueamento” ou “lavagem”, ou seja, com a efetiva
ocultação ou dissimulação de bens, direitos ou valores provenientes de infração
penal (crime material). A tentativa é tecnicamente admitida, vez que se trata
de um crime comissivo (praticado por ação) e plurissubsistente (a conduta é
composta de diversos atos), sendo a previsão de que “a tentativa é punida nos
termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal”, prevista no parágrafo
terceiro, do dispositivo em estudo, se revela totalmente desnecessária.
O parágrafo primeiro,
do artigo 1º, da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, prevê uma série de
figuras equiparadas, ao descrever em seus incisos, diversas modalidades de
prática destas condutas. Ressalta-se que, a Lei n. 12.683, de 09 de julho de
2012, também alterou este parágrafo primeiro. Em sua primitiva redação, este
dispositivo equiparava à “lavagem” de capitais a conduta de “quem, para ocultar
ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de
qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo”. Como visto acima, o
rol de crimes antecedentes, que outrora era previsto no “caput” do artigo 1º,
foi suprimido pela Lei n. 12.683, de 09 de julho de 2012. Assim sendo, com a
finalidade de conferir coerência à Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, o
legislador penal alterou o parágrafo primeiro, passando a ter a seguinte
redação: “incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização
de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”.
No inciso I, deste
parágrafo primeiro, está descrita a conduta daquele que para ocultar ou
dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração
penal, “os converte em ativos lícitos”. O núcleo deste tipo consiste em
“converter”, que significa mudar, transformar. O objeto material sobre o qual
recai a conduta corresponde a “ativos lícitos”, i.e., bens, direitos, valores
ou créditos adquiridos conforme a forma prescrita em lei.
E no inciso II, foi
tipificada a conduta daquele que para ocultar ou dissimular a utilização de
bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, “os adquire, recebe,
troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou
transfere”. Neste dispositivo foram previstas diversas modalidades de prática
do crime, traduzidas nos seguintes verbos: (i) adquirir – comprar, obter; (ii)
receber – aceitar em pagamento; (iii) trocar – permutar; (iv) negociar –
firmar, celebrar acordo, ajuste ou contrato; (v) dar – transferir a posse de
algo, gratuitamente, para outrem; (vi) receber em garantia – tomar, aceitar
caução; (vii) guardar – ter sob vigilância e cuidado, pôr em lugar apropriado,
reservar; (viii) ter em depósito – conservar ou reter a coisa à sua disposição;
(ix) movimentar – circular ou mudar a posição; (x) transferir – transportar,
levar de um lugar a outro.
Já no inciso III, o
legislador incriminou a conduta daquele que para ocultar ou dissimular a
utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal,
“importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros”.
Nesta figura equiparada, coexistem dois núcleos do tipo, a seguir expostos: (i)
importar – fazer entrar no território nacional; (ii) exportar - fazer sair do
território nacional. O objeto material deste crime consiste em “valor não
correspondente ao verdadeiro”, ou seja, hipóteses de superfaturamento ou
subfaturamento de bens, que pode acarretar um aparente “prejuízo”, com a finalidade
de “lavar” os valores obtidos de forma lícita.
Ademais, o parágrafo
segundo do artigo 1º, Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, traz mais algumas
figuras equiparadas, em seus dois incisos.
No inciso I, se busca
incriminar a conduta daquele que “utiliza, na atividade econômica ou
financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”. O núcleo
deste tipo penal consiste em “utilizar” (fazer uso). Além disso, o dispositivo
emprega dois elementos normativos (i) atividade econômica – produção ou
circulação de bens e serviços; (ii) atividade financeira – coleta,
intermediação ou aplicação de recursos.
Este inciso sofreu
duas alterações pela Lei n. 12.683, de 09 de julho de 2012. A primeira
alteração ocorreu justamente pela mesma razão da modificação do parágrafo
antecedente, tendo em vista a supressão do rol que era previsto no “caput” do
dispositivo em estudo. Assim, o legislador substituiu a expressão “provenientes
de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo” pela fórmula “provenientes
de infração penal”. Já a segunda alteração deste inciso, se refere ao elemento
subjetivo da conduta. Pela redação anterior do dispositivo era prevista
textualmente a presença do elemento subjetivo “que sabem serem”, traduzindo a
exigência de dolo direto para a responsabilização penal do agente. A Lei n.
12.683, de 09 de julho de 2012, ao suprimir esta expressão, reforçou a tese que
o dolo indireto também estaria abarcado como elemento subjetivo típico,
principalmente para os fatos praticados em momento posterior ao da sua edição.
Recentemente, na Ação Penal n. 470, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, o
tema foi debatido por ocasião do julgamento do sétimo item da acusação, que
versava justamente sobre os crimes de “lavagem” supostamente praticados pelos
réus do processo. A Procuradoria Geral da República pugnou pela condenação dos
réus pelo predito crime, fundamentando a pretensão acusatória na tese da
ocorrência de dolo eventual. Ocorre que, sobre este item houve empate de votos
(cinco a cinco), Com efeito, o Supremo Tribunal Federal deixou em aberto a
possibilidade de que em futuros processos que versem sobre o crime de
“lavagem”, mesmo que não existam provas de que os réus tinham o conhecimento de
que os valores recebidos eram provenientes de infração penal, possam haver
condenações com base na tese do dolo eventual.
Por outro lado, o
inciso II, deste parágrafo segundo, prevê como típica a conduta daquele que
participa (toma parte) de grupo (reunião de pessoas), associação (atividade
organizada de pessoas para a realização de um objetivo comum) ou escritório
(local onde são exercidas atividades profissionais), tendo conhecimento (dolo
direto) de que sua atividade principal (atividade-fim) ou secundária
(atividade-meio) é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.
O parágrafo quarto,
do artigo 1º, da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, prevê duas causas
especiais de aumento de pena. A pena do crime de “lavagem” será aumentada de um
a dois terços, se: (i) os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma
reiterada: esta previsão, demasiadamente larga, diz respeito à habitualidade
criminosa dos crimes antecedentes. Certamente por um lapso, o legislador penal,
por ocasião da edição da Lei n. 12.683, de 09 de julho de 2012, deixou de alterar
esta disposição, pelo que, como afirmado, o rol de crimes que era previsto no
artigo 1º, da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, foi expressamente revogado;
(ii) por intermédio de organização criminosa: o artigo 2º, da Lei n. 12.694, de
24 de julho de 2012, definiu organização criminosa como: “a associação, de três
ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de
tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja
pena máxima seja igual ou superior a quatro anos ou que sejam de caráter
transnacional”.
Por derradeiro, o
parágrafo quinto, do artigo 1º, da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998,
confere ao magistrado um leque de possibilidades despenalizadoras para o caso
em que o acusado resolva colaborar com a comprovação da materialidade do crime,
apuração de autoria, e solução das demais circunstâncias. Podem ser
beneficiados com a aplicação destes institutos tanto os autores como partícipes.
O legislador exige que a colaboração seja espontânea, não se satisfazendo com a
mera voluntariedade. Além disso, esta colaboração deve conduzir “à apuração das
infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à
localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime”. No caso de
colaboração espontânea de autor ou partícipe, que conduza a uma das hipóteses
citadas, o magistrado poderá: (i) reduzir a pena de um a dois terços – causa
especial de diminuição de pena –, e fixar o início de cumprimento de pena no
regime aberto ou semiaberto; (ii) deixar de aplicar a pena – perdão judicial;
ou (iii) substituir a pena privativa de liberdade imposta por pena restritiva
de direitos.
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Diretor geral dos
cursos de Especialização TeleVirtuais da LFG. Doutor em Direito Penal pela
Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri (2001). Mestre em
Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP
(1989). Professor de Direito Penal e Processo Penal em vários cursos de Pós-Graduação
no Brasil e no exterior, dentre eles da Facultad de Derecho de la Universidad
Austral, Buenos Aires, Argentina. Professor Honorário da Faculdade de Direito
da Universidad Católica de Santa Maria, Arequipa, Peru. Promotor de Justiça em
São Paulo (1980-1983). Juiz de Direito em São Paulo (1983-1998). Advogado
(1999-2001). Individual expert observer do X Congresso da ONU, em Viena (2000).
Membro e Consultor da Delegação brasileira no 10º Período de Sessões da
Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, em Viena (2001).
Como citar este texto
(NBR 6023:2002 ABNT):