terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Estupro de vulnerável consentido: uma absolvição polêmica

A vulnerabilidade da vítima não deve ser entendida como um critério absoluto, mas precisa ser medida de acordo com as circunstâncias de cada caso.
Sumário: 1. A hediondez de todos os estupros; 2. Direito intertemporal: hediondez do estupro simples, progressão de regime e aumento de pena; 3. Prisão preventiva e sursis; 4. Defensores, atenção...; 5. Bibliografia.

1. A hediondez de todos os estupros

Com a redação que lhe deu a Lei n. 12.015/09, o artigo 1°, incisos V e VI, da Lei n. 8.072/90, dispõe que são considerados hediondos os seguintes crimes [...]: [...] V – estupro (art. 213, caput e §§ 1° e 2°); VI – estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1°, 2°, 3° e 4°). A menção clara às figuras do caput e dos parágrafos não deixa dúvida quanto à hediondez tanto das modalidades simples como das qualificadas desses delitos, pondo fim à controvérsia teórico-jurisprudencial sobre a aplicabilidade da Lei dos Crimes Hediondos ao crime de estupro simples (e atentado violento ao pudor simples), ou com violência presumida, na anterior fórmula com que o Código Penal tratava a matéria.
Assim é que a disciplina legal do estupro básico (art. 213 e §§) e do estupro de vulnerável (art. 217-A e §§), considerados crimes hediondos, sujeita o agente às disposições penais e processuais da Lei n. 8.072/90, dentre as quais se destacam a impossibilidade de liberdade provisória, o obrigatório início do cumprimento da pena em regime fechado e a necessidade de cumprimento de frações maiores da pena para obtenção do livramento condicional e da progressão de regime prisional.
A hediondez persiste ainda que na forma tentada, como, aliás, flui expressamente do caput do artigo 1° da Lei n. 8.072/90. Já vinha sendo este o entendimento antes mesmo da vigência da Lei n. 12.019/05, conforme se verifica: O art. 1º da Lei 8.072/90 traz o elenco dos crimes que o legislador considera hediondos, entre eles o de estupro, tanto o simples como também o qualificado pelo resultado decorrente da violência, na forma tentada ou consumada (TJSP, Ap. 313.979-3/5, 1ª Câm. Extraordinária, rel. Des. Oliveira Passos, j. 21-2-2001, RT 790/589).
Quanto à liberdade provisória, já se decidiu, entretanto, que o simples fato de se tratar de crime hediondo ou equiparado, in casu, tráfico de entorpecentes e atentado violento ao pudor, não impede a concessão de liberdade provisória, uma vez constatada a ausência dos requisitos para a decretação da prisão preventiva (STJ, HC 35.090/RS, 6ª T., rel. Min. Paulo Gallotti, j. 19-10-2004).

2. Direito intertemporal: hediondez do estupro simples, progressão de regime e aumento de pena

O estupro e o estupro de vulnerável, mesmo em sua forma simples, como visto, são crimes hediondos, assim expressamente declarados, como visto. Ainda antes da vigência da Lei n. 12.015/09, a jurisprudência caminhava no sentido de que Os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram modalidades de crime hediondo, sendo irrelevante que a prática de qualquer desses ilícitos penais tenha causado, ou não, lesões corporais de natureza grave ou morte, que traduzem, nesse contexto, resultados qualificadores do tipo penal, não constituindo, por isso mesmo, elementos essenciais e necessários ao reconhecimento do caráter hediondo de tais infrações delituosas (STF, HC 89.554/DF, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 6-2-2007). E ainda: 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal firmou entendimento no sentido de que, nos casos de estupro e atentado violento ao pudor, as lesões corporais graves ou morte traduzem resultados qualificadores do tipo penal, não constituindo elementos essenciais e necessários para o reconhecimento legal da natureza hedionda das infrações. 2. Em razão do bem jurídico tutelado, que é a liberdade sexual da mulher, esses crimes, mesmo em sua forma simples, dotam-se da condição hedionda com que os qualifica apenas o art. 1º da Lei n. 8.072/90 (STF, HC 88.245/SC, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, rela. p/ Acórdão Mina. Cármen Lúcia, j. 16-11-2006). O TJRS também assim decidiu: [...] 2. Hediondez dos Delitos. Inequívoca incidência da Lei nº 8.072/90 no caso. Reconhecimento da hediondez dos delitos praticados pelo acusado. Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, mesmo quando praticados em sua forma simples, são crimes hediondos. Jurisprudência.
Entretanto, trata-se, a nova redação do artigo 1° da Lei n. 8.072/90, de uma nova lei mais severa, do ponto de vista de quem, acompanhando corrente jurisprudencial minoritária, entendesse que o estupro (e o atentado violento ao pudor) simples, ou com violência presumida, não era hediondo. Para estes, a nova lei somente deverá ser aplicável a fatos ocorridos já na sua vigência, aplicando-se a lei antiga (que, nesse caso, ultra-age) a fatos anteriores à Lei n. 12.015/09.
Aplica-se o disposto na Lei n. 11.464/07 quanto às frações de dois quintos (primário) e três quintos (reincidente) de pena a ser cumprida para o condenado por estupro, cometido a partir de 29 de março de 2007, preencher o requisito temporal para obter progressão de regime prisional. Com a edição da Súmula Vinculante n. 26, o STF definiu-se pela inaplicabilidade da citada Lei n. 11.464/07 a crimes cometidos antes de sua vigência, iniciada naquela data [01]. Prevaleceu o entendimento de que o artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90, era inconstitucional e, em conseqüência disso, que o condenado por crime hediondo já fazia jus à progressão – o que se dava com o cumprimento de um sexto da pena, nos termos do artigo 112 da LEP. Constituindo este dispositivo a norma penal que regia a matéria, até o advento da Lei n. 11.464/07, sua eficácia estende-se pelo tempo, quando o delito ensejador da condenação tiver sido praticado na sua vigência [02].
Com a definição do estupro de vulnerável como crime hediondo, tem fim a controvérsia sobre a aplicabilidade do artigo 9° da Lei dos Crimes Hediondos aos casos dos antigos crimes de estupro e atentado violento ao pudor cometidos mediante violência presumida (pois não mais se pode falar nessa causa de elevação de pena para o crime de estupro, sendo a vítima pessoa vulnerável). É que parte da jurisprudência sustentava somente ser aplicável tal causa de aumento quando houvesse violência real contra vítima menor de catorze anos, alienada ou débil mental, ou que não pudesse, por outro motivo, oferecer resistência (antigo art. 224 do CP), pois a fórmula da presunção de violência, já tendo servido para configurar os delitos, como seu elemento constitutivo, não podia ser novamente utilizada para aumentar as penas (princípio do ne bis in idem).
Para quem seguia essa corrente, a nova lei, punindo o estupro de vulnerável com pena mínima de oito anos de reclusão, é mais gravosa, devendo a lei anterior ultra-agir em relação a fatos praticados na sua vigência. Para os que, ao contrário, admitiam o aumento determinado pelo artigo 9° da Lei n. 8.072/90 aos casos de violência presumida (resultando em pena mínima de nove anos), a alteração é benéfica, devendo o artigo 217-A, que prevê uma pena mínima de oito anos de reclusão, retroagir alcançando os crimes cometidos antes mesmo de sua entrada em vigor. Segundo esta última corrente, tratando-se de condenado com trânsito em julgado, caberá pedido ao juízo das execuções (art. 66, I, da LEP) para aplicar a lei nova mais benéfica.

3. Prisão preventiva e sursis

A gravidade do crime de estupro tem servido para justificar decretos de prisão preventiva, muitas vezes ignorando a necessidade de estarem preenchidos os requisitos postos pelo artigo 312 do Código de Processo Penal. Presente o fumus boni juris relativamente à autoria e uma vez provada a materialidade, tem sido freqüente a imposição da prisão processual. Também o clamor público provocado pela natureza repugnante do delito tem servido de fundamento para o aprisionamento provisório. Até mesmo uma detalhada fundamentação do decreto de custódia costuma ser dispensada. É como se vê do seguinte julgado do STF: Há lesão à ordem pública quando os fatos noticiados nos autos são de extrema gravidade e causa insegurança jurídica a manutenção da liberdade do paciente. Nos crimes contra os costumes, que atentam contra a liberdade sexual, a repercussão dos efeitos na sociedade é grande, especialmente quando as vítimas são menores de idade. O Supremo Tribunal admite que o decreto de prisão preventiva não precisa ser exaustivo, bastando que a decisão analise, ainda que de forma sucinta, os requisitos ensejadores da custódia preventiva (HC 90.710/GO, 1ª T., rela. Mina. Cármen Lúcia, j. 6-3-2007).
É preciso cautela para não confundir a repulsa naturalmente causada pela prática do delito com o risco de, estando solto, vir o acusado a colocar em perigo a sociedade. Para essa constatação é necessário verificar a probabilidade concreta de que o agente provoque tal risco. E, apesar de decisões em contrário, tampouco o clamor público, por si só, deve ser razão para a prisão processual, sendo oportuno observar que ele, com freqüência, é provocado muito mais pela divulgação sensacionalista dos fatos do que pelo crime em si mesmo.
Além do mais, a motivação das decisões judiciais é imperativo constitucional e não deve ser negligenciada por conta da gravidade da infração. A notícia de possível envolvimento em delitos assemelhados é indicador de periculosidade, mas esta há de ser concretamente avaliada e constituir objeto do decreto de custódia. Não se há que abrir mão de preceitos garantidores de direitos fundamentais, como a liberdade e a presunção de inocência, apenas em vista da gravidade da infração, nem aceitar decisões desprovidas de suficiente fundamentação. Há, no entanto, visível tendência em flexibilizar certas exigências processuais no trato com acusados de estupro, já se tendo julgado que é de se preservar a custódia preventiva de réu acusado da prática de crime de estupro, atentado violento ao pudor e rapto violento ou mediante fraude quando, além da ação penal em apuração, imputam-se-lhe, em outros inquéritos/processos, mais doze delitos da mesma natureza contra vítimas diferentes. Manutenção do decreto segregatório a fim de se garantir a ordem pública, por se tratar de pessoa propensa às práticas delituosas de natureza gravíssima (STJ, RHC 10.784/SP, 6ª T., rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 6-2-2001).
Cabe suspensão condicional da pena, ou sursis, em condenação por crime de estupro tentado, desde que haja compatibilidade do montante da pena com os requisitos daquele instituto. Embora se trate de crime hediondo, não existe impedimento expresso ao benefício, não se admitindo analogia in malam partem para excluir a possibilidade da medida.
É importante ainda lembrar que, segundo já se decidiu, pode ser concedido sursis ao condenado por tentativa de estupro, a despeito de se tratar de crime inserido no elenco dos delitos hediondos. Veja-se: Penal. Habeas Corpus. Art. 213 c/c art. 14, II, do CP. Pena-base fixada no mínimo legal. Circunstâncias judiciais totalmente favoráveis. Sursis. Atendidos os requisitos exigidos pelo art. 77, do Código Penal, afigura-se viável a concessão do benefício da suspensão condicional da pena (sursis) – (STJ, HC 89.859/SP, 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. 13-12-2007). O mesmo tribunal também já julgou em sentido contrário, como no caso do REsp. 91.852, 6ª T., DJU de 5-5-1997, p. 17.197), mas se trata de entendimento francamente minoritário [03].
Contudo, em se tratando de estupro de vulnerável, tendo em vista as penas cominadas, apenas a tentativa poderia ensejar a sua concessão e, mesmo assim, somente na modalidade chamada de sursis etário, prevista no artigo 77, § 2°, do Código Penal.

4. Defensores, atenção...

A maneira explícita com que a Lei n. 12.015/09 incluiu o estupro qualificado e o estupro de vulnerável na lista dos delitos hediondos bem pode provocar uma interessante questão, a benefício do réu, ou condenado: se foi apenas agora que a lei passou a tratar expressamente os estupros simples e de vulnerável (situação equivalente à antiga violência presumida) como hediondos, então tinham razão os que sustentavam que antes eles não o eram? Significaria dizer, o réu recebeu o tratamento da LCH sem o merecer? Importa discutir esse tema, dadas as questões relacionadas ao juízo das execuções, como a progressão de regime.
Nesse caso, a alteração formal do rol dos crimes hediondos, com o acréscimo de uma nova figura, é situação mais gravosa, que obviamente não retroage. Então, pode-se dizer que surge ao condenado pelo crime de estupro simples, ou com violência presumida, que indevidamente recebeu tratamento de autor de crime hediondo (não lhe foi concedida liberdade provisória, nem livramento condicional com um terço de cumprimento da pena...), a possibilidade de pleitear benefícios a que já tinha direito, como, por exemplo, a progressão de regime a partir do instante em que cumpriu um sexto da pena? Nesta hipótese, muito provavelmente já estarão cumpridos dois sextos ou mais da penitência, colocando-se outra questão tormentosa: a progressão pode ocorrer por saltos, isto é, do regime fechado diretamente para o aberto? Ainda para quem entender que a hediondez só agora foi legalmente imposta (ao estupro simples e com violência presumida), colocar-se-ia a questão de que, até o presente não tendo o condenado recebido o benefício da progressão, sujeitar-se-ia aos prazos de dois ou três quintos para a promoção de regime. Esta última pergunta, contudo, já foi respondida, com a edição da SV n. 26 do STF [04]: a progressão dá-se com um sexto, se o crime foi cometido antes da Lei n. 11.464/07.
De qualquer maneira, o assunto só oferece problemas para quem entenda que o estupro e o atentado violento ao pudor simples não eram crimes hediondos. Para quem já o via com tal característica, questões como a progressão de regime ficam solucionadas segundo as regras aplicáveis, antes e agora, aos delitos hediondos.

5. Bibliografia

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CUNHA, Rogério Sanches. Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. Comentários à reforma criminal de 2009 (Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Valerio de Oliveira Mazzuoli). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
DIX SILVA, Tadeu Antônio. Crimes sexuais: reflexões sobre a nova Lei 11.106/05. Leme: Mizuno, 2006.
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MOURA TELES, Ney. Direito penal. São Paulo: Atlas, 2004, v. III.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
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Notas

1.                     Diz a SV n. 26: Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.
2.                      O texto da SV n. 26 não prima pela clareza: ao mandar o juiz observar a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 8.072/90, não declara expressamente tal qualidade, mais parecendo que remete o julgador a uma análise pessoal da possível inconstitucionalidade do dispositivo legal. Melhor teria sido adotar a redação original da SV: Para efeito de progressão de regime de cumprimento de pena, por crime hediondo ou equiparado, praticado antes de 29 de março de 2007, o juiz da execução, ante a inconstitucionalidade do artigo , parágrafo 1º da Lei 8.072/90, aplicará o artigo 112 da Lei de Execuções Penais, na redação original, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche ou não os requisitos objetivos e subjetivos do benefício podendo determinar para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. Note-se, nos dois textos, a referência ao exame criminológico, aparentemente resolvendo outra questão controversa: a possibilidade de realização do exame depois da modificação operada no art. 112 da LEP pela Lei n. 10.792/03.
3.                    O cabimento do sursis em condenações por crimes hediondos foi questão do 81º Concurso para Promotor de Justiça do Estado de S. Paulo, sendo considerada correta a resposta em que se admitia o benefício.
4.                    Cujo maior mérito, como já se viu, não é a clareza.

Autor

·                                
procurador de Justiça no Estado de São Paulo, doutor em Direito Processual Penal pela PUC/SP, professor universitário, membro do Movimento Ministério Público Democrático

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