domingo, 15 de janeiro de 2012

Embriaguez + direção de veículo automotor + resultado morte = homícidio doloso ou culposo?

Cumpre aos delegados, promotores e juízes verificar caso a caso a ocorrência do crime capitulado no artigo 121, do Código Penal ou do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro, de acordo com as provas apresentadas.
Acidentes automobilísticos que envolvem motoristas embriagados e que resultam em morte têm recebido grande atenção da mídia e causado grande comoção na sociedade.
A explosiva mistura de álcool e direção (quase sempre em altíssima velocidade) tem aumentado diuturnamente a quantidade de vítimas fatais e dilacerado sonhos e histórias de vida que são abruptamente interrompidas em violentas colisões e atropelamentos.
Para o operador do direito que labuta na seara criminal, a situação acima retratada traz insistente dúvida: como tipificar o ato praticado por aquele que, embriagado, toma a direção de veículo automotor, excede o limite de velocidade e as leis de trânsito e finda por tirar a vida de outrem? Trata-se de homicídio doloso (com incidência do dolo eventual) ou culposo (figurando a chamada culpa consciente)? No primeiro caso, aplica-se o artigo 121, do Código Penal. Na segunda hipótese, o crime praticado é o do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97).
Em primeiro lugar, urge definir dolo eventual e culpa consciente.
O primeiro é definido pelo Código Penal. A parte final do artigo 18, I, do referido diploma legal diz que o crime é doloso quando o agente assume o risco de produzir o resultado (assim também o é quando o agente quer o resultado – dolo direto, definido na primeira parte do mesmo dispositivo). Em exemplo aligeirado, é quando o agente prevê que com sua ação poderá advir resultado típico (definido como crime), mas continua a agir (dê no que dê, aconteça o que acontecer, vou continuar agindo). É a aceitação do resultado crime (ou pelo menos conformação com sua ocorrência, se vier a acontecer).
A segunda não tem definição legal. Genericamente, diz-se culposo o crime quando o "agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia" (artigo 18, II, do Código Penal). A culpa consciente se dá quando o agente até prevê que sua ação poderá redundar na ocorrência do resultado, mas imagina profanamente que este não ocorrerá (dirige em velocidade bastante superior à permitida, prevê que com isso poderá atropelar e matar alguém, mas imagina que tal resultado não ocorrerá). Não há aqui a aceitação do resultado crime pelo agente.
Observados os dois conceitos (ainda que não estudados em sua completude e de forma profunda), percebe-se que dificilmente se observará na prática a ocorrência da primeira hipótese, partindo da premissa de que em ambos os casos deve-se investigar a fundo o que ia na cabeça do agente quando ele decidiu entrar no seu veículo depois da ingestão exagerada de álcool. Será que ele pensou: estou embriagado, posso vir a atropelar e matar alguém e assumo a ocorrência deste resultado se ele vier a acontecer (aconteça o que acontecer, mate ou não alguém, vou dirigir embriagado - dolo eventual). Ou imaginou: estou bêbado, posso vir a atropelar e ceifar a vida de outrem, mas confio cegamente que com minha perícia automobilística esse resultado não virá a acontecer (previsão e não aceitação do resultado – culpa consciente).
Ao que penso, no mais das vezes, o que acontece na prática é a segunda situação. É difícil imaginar que passe pela cabeça de um indivíduo normal a previsão e aceitação do resultado morte de uma pessoa que ela sequer conheça.
Óbvio que há sim possibilidade de verificar na prática ocorrência do dolo eventual. Quando, por exemplo, o agente embriagado e em alta velocidade cruza sinal vermelho, finda colidindo com outro veículo e confiscando a vida do outro motorista, penso haver elementos para afirmar que houve dolo eventual (é muito difícil, embora possível, acreditar na versão de que o agente acreditava que poderia desviar de veículo que cruzasse o sinal, evitando o choque e suas consequências). Parece evidente que o agente assumiu o risco de produzir o resultado morte (dê no que dê, vou cruzar esse sinal vermelho).
Diferente é a pessoa que, embriagada, finda perdendo o controle do carro e atropelando transeunte. Aqui a culpa se mostra mais evidente (a previsibilidade da ocorrência do sinistro é bastante menor que no caso acima desenhado).
Note-se que há equívoco em analisar a situação de forma matemática ou puramente normativa (descurando do estudo do caso concreto apresentado – todas as circunstâncias que gravitaram ao seu redor). Ao meu ver, não há como criar a equação álcool + direção de veículo automotor + morte = homicídio doloso (dolo eventual). Principalmente porque dizer que o crime foi doloso significa ir à fundo na intenção do agente (dolo é elemento subjetivo do tipo e exige análise profícua da intenção do autor do fato).
Óbvio também que a tese da culpa consciente, por ser a mais favorável ao agente, sempre será levantada pela defesa. Daí porque devem delegados, promotores e juízes estudar o caso com amplitude, esmiuçando todas as provas possíveis (câmeras das ruas em que o carro do autor do fato passou, radares, prova testemunhal, exame de local de crime e outras perícias determinadas, nível de álcool no sangue do agente, participação da vítima no sinistro, prova testemunhal e interrogatório do sujeito ativo do crime apurado).
Os tribunais tupiniquins dificilmente têm retirado da análise do júri popular os fatos definidos pelos juízos inferiores como crimes dolosos contra vida. Assim é que têm sido mantidas decisões de pronúncia calcadas na análise objetiva do fato (considerando concentração alcoólica no sangue do agente, velocidade no momento do impacto e desrespeito às leis de trânsito), mandando a júri motoristas que, embriagados, findam ceifando vidas (não há, no mais das vezes como deixar de ser assim, vez que é difícil imaginar situação em que o agente admita ter assumido o risco de produzir o resultado morte). Vejamos exemplo:
Ementa: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO DOLOSO (DOLO EVENTUAL) PRATICADO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ART. 121, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. MANUTENÇÃO DA DECISÃO DE PRONÚNCIA. Uma linha muito tênue separa o dolo eventual da culpa consciente, pois em ambos os casos o possível resultado é conhecido e não é desejado pelo agente. A diferença reside no fato de que, na culpa consciente o agente sequer cogita a hipótese de tal resultado realmente vir a ocorrer, enquanto no dolo eventual aceita a possibilidade, simplesmente aceitando o risco que corre de produzir o resultado. Diante de tão sutil diferença, seria mesmo imprudente privar os jurados da apreciação do fato, que consiste em um acidente de trânsito causado por motorista embriagado. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE ANIMUS NECANDI NA CONDUTA DO ACUSADO. INVIABILIDADE DE RECONHECIMENTO DESDE LOGO DIANTE DA INEXISTÊNCIA DE CERTEZA ABSOLUTA QUANTO AO DOLO DE MATAR. A desclassificação do delito importa em apreciação do animus necandi, matéria de competência exclusiva do Tribunal do Júri, só podendo ser operada nesta fase processual quando há certeza absoluta da inexistência do dolo de matar. EXCESSO DE LINGUAGEM. INOCORRÊNCIA. Não se configura o excesso na pronúncia quando o prolator se limita a fundamentar sua decisão, nos termos do artigo 93, inciso IX, da CF, apenas descrevendo depoimentos testemunhais, a fim de embasá-la. NEGARAM PROVIMENTO AOS RECURSOS (Recurso em Sentido Estrito Nº 70036376309, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcel Esquivel Hoppe, Julgado em 07/07/2010).
O Superior Tribunal de Justiça, instado a se manifestar acerca do tema pela via estreita do habeas corpusfirmou entendimento de que é incabível análise pormenorizada da prova com o fito de determinar se o agente que se embriaga, toma a direção de veículo automotor e finda ceifando vidas agiu com dolo eventual ou culpa consciente nos autos do referido remédio heroico. O Pariato tem optado por deixar a análise do caso para o júri popular. Vejamos decisum:
HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO SIMPLES A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXAME DE ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. ANÁLISE APROFUNDADA DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. VIA INADEQUADA. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. ORDEM DENEGADA. 1. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413 do CPP. 2. O exame da insurgência exposta na impetração, no que tange à desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto probatório, já que para que seja reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, faz-se necessária uma análise minuciosa da conduta do recorrente, procedimento este inviável na via estreita do habeas corpus. 3. Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício. 4. Na hipótese, tendo a decisão impugnada asseverado que há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao agente e tendo a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidencia ilegalidade na manutenção da pronúncia pelo dolo eventual, que, para sua averiguação depende de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do procedimento próprio, dotado de cognição exauriente. 5. Ordem denegada (STJ, HC 199100/SP, 5ª Turma, rel. Min. Jorge Mussi, j. 04/08/2011).
O fato é que estamos diante de crimes com penas bastante diferentes (o homicídio doloso tem pena de 6 a 20 anos e o culposo na direção de veículo automotor é apenado com reprimenda de 2 a 4 anos) e de grande comoção causada pelos trágicos resultados. Isso gera considerável pressão incidente sobre os atores do processo penal (delegados, promotores e juízes), que finda influenciando a decisão a ser tomada por estes (esta decisão tem diversos reflexos – possibilidade de concessão de fiança pelo delegado de polícia, sujeição do autor do fato ao tribunal do júri, dentre outros).
Penso que há duas formas de enfrentar de forma pragmática a situação minimizando seus funestos resultados (mortes resultantes da embriaguez na direção de veículo automotor): a) intensificar a fiscalização com o fito de impedir que motoristas guiem bêbados; b) aumentar de forma proporcional, estudada e arrazoada a pena descrita no artigo 302, do CTB.
Ademais, cumpre aos delegados, promotores e juízes verificar caso a caso a ocorrência do crime capitulado no artigo 121, do Código Penal ou do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro, de acordo com as provas apresentadas, evitando enquadramentos matemáticos em colisões e atropelamentos que envolvem motoristas embriagados, alta velocidade e mortes.
Delegado de Polícia Federal e Professor da FACAPE - Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina
Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT
SILVA, Márcio Alberto Gomes. Embriaguez + direção de veículo automotor + resultado morte = homícidio doloso ou culposo?. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em:<http://jus.com.br/revista/texto/20846>. Acesso em: 14 jan. 2012.

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