Privar alguém da liberdade, no nosso país, sempre foi medida excepcional. A partir da época do descobrimento e durante mais de 300 anos - períodos históricos chamados de Brasil Colônia e de Reino Unido ao de Portugal e Algarves -, vigiam aqui as Ordenações, mesma Lei de Portugal e já havia a preocupação em torno de por alguém em ferro, como conseqüência de sua prisão. Determinadas pessoas, como os “Fidalgos de Solar”, os “Desembargadores”, os “Doutores em Leis, ou em Cânones, ou em Medicina”, por exemplo, bem assim as “mulheres dos sobreditos enquanto com eles forem casadas, ou estiverem viúvas honestas” não podiam ser “presos em ferros, senão por feitos em que merecerão morrer morte natural, ou civil”.
Em outras palavras, a Lei brasileira sempre estabeleceu limites para o uso de ferros, dada a óbvia necessidade de se encontrar o ponto de equilíbrio entre a preservação dos direitos sociais, ameaçados pelos delinqüentes, e a dos direitos individuais, quer dizer, os direitos dos próprios transgressores.
Hoje em dia, o uso de ferros é, tão só, expressão sinônima de emprego de algemas, posto que, paulatinamente, foram sendo abolidos a “calceta no pé e corrente de ferro”, ou a prisão de escravos “com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar”, referidas pelo Código Criminal do Império de 1830, sendo certo que um decreto imperial de 1871 proibiu também o deslocamento de presos “com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor”.
O Código Penal de 1890, a Consolidação das Leis Penais de 1932 e o Código Penal vigente, que é de 1940, não trataram do assunto. No Estado de São Paulo, o Decreto nº 4.405-A, de 17 de abril de 1928, que instituía o Regulamento Policial, estabelecia que só excepcionalmente, por questões de segurança, no preso poderiam ser empregados “ferros, algemas ou cordas”, sendo que o condutor, no caso de abuso, poderia ser multado, pela autoridade a quem fosse apresentado o preso.
Nos dias de hoje, porque é letra morta o disposto pelo artigo 199, da Lei de Execução Penal (nº 7.210/84), que há quase um quarto de século previa que o assunto deveria ser disciplinado por Decreto Federal, podemos dizer que o uso de algemas está indiretamente regulado pelos artigos 284 e 292, do Código de Processo Penal, e pelos artigos 234 e 242, do Código de Processo Penal Militar. É bom frisar que, no Estado de São Paulo, há ainda o Decreto nº 19.903, de 30 de outubro de 1950, que regula o tema, de forma explícita.
Muito embora possa parecer inútil lembrar, é claro que o emprego de algemas pressupõe que a prisão imposta a alguém seja legal, isto é, decorrente de flagrante delito ou de ordem judicial. Assim, prisão do tipo “para averiguações”, e acompanhada de uso de algemas, constitui duplo abuso de autoridade, passível de punição, nos termos da Lei de Abuso de Autoridade (nº 4.898/65).
Diante desses mandamentos legais, podemos concluir que são estas - e só estas - as hipóteses que permitem a utilização de algemas:
1. se o preso for de conhecida periculosidade;
2. se o preso oferecer resistência à prisão ou tentar fugir;
3. se terceiro oferecer resistência à prisão da pessoa que deva ser legalmente presa;
4. se o preso tentar agredir alguém ou lesionar a si próprio.
Essas mesmas regras devem ser obedecidas no caso de remoção de presos, para realização de trabalhos policiais ou judiciais aos quais eles devam estar presentes (como acareações, audiências, julgamento pelo Tribunal do Júri etc.).
Sobre o uso de algemas, os Tribunais do país assim se manifestaram:
“Não constitui constrangimento ilegal o uso de algemas por parte do acusado, durante a instrução criminal, se necessário à ordem dos trabalhos e à segurança das testemunhas e como meio de prevenir a fuga do preso” (STF, RHC 65.465-SP, Relator Ministro CORDEIRO GUERRA, julgado em 5/SET/78);
“O uso de algemas durante o julgamento não constitui constrangimento ilegal se essencial à ordem dos trabalhos e à segurança dos presentes” (STF, HC 71.195/2-SP, Relator Ministro FRANCISCO REZEK, julgado em 25/OUT/94);
“A jurisprudência pretoriana tem firmado o entendimento de que não configura constrangimento ilegal a manutenção do réu algemado durante a sessão plenária do Tribunal do Júri se esta medida for necessária ao bom andamento e segurança do julgamento, bem como das pessoas que nele intervém. Enquanto não regulamentado por lei o uso de algemas, o emprego deste meio de contenção, em nada incompatível com o princípio da inocência, deve ficar ao prudente arbítrio do Juiz-Presidente do Júri, a quem compete a polícia das sessões” (STJ, RHC 6.922-RJ, Relator Ministro VICENTE LEAL, julgado em 10/NOV/97);
“Não constitui constrangimento ilegal o uso de algemas em indivíduo perigoso e de físico avantajado durante a realização do julgamento, pois serve tal medida para evitar possível fuga do réu e preservar a segurança das pessoas presentes” (RT 694/318);
Entretanto, se o uso das algemas não for essencial à ordem dos trabalhos, nem à segurança dos presentes ao julgamento, e nem constituir a única providência capaz de evitar uma tentativa de fuga do preso, existirá constrangimento ilegal:
“A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado” (STJ, RHC 5.663-SP, Relator Ministro ANSELMO SANTIAGO, julgado em 19/AGO/96).
Aliás, esse entendimento acabou sendo adotado pelo legislador: a recente modificação no texto do Código de Processo Penal, pela Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, faz referência expressa ao uso de algemas no plenário do Júri (artigo 474, parágrafo 3º), impondo claros limites à medida.
Paralelamente, é bom anotar que o artigo 10, da Lei nº 9.537/97, que trata da segurança do tráfego em águas sob a jurisdição nacional, permite que o comandante da embarcação ordene “a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga”.
Mas, fora disto, quem tiver determinado, ou executado, o ato de algemar alguém, estará infringindo a Lei de Abuso de Autoridade, mais especificamente o seu artigo 4º, letra “b”, que proíbe “submeter pessoa sob a sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”.
E, realmente, é preciso restringir ao máximo o emprego de algemas, porque a prática possui enorme carga negativa, derivada da idéia de desonra que transmite, coisa incompatível com a dignidade humana, que é direito fundamental de todos, segundo o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
Em suma, o emprego de algemas não é regra, é exceção, e só pode ser admitido como forma de garantir a segurança social, a aplicação da Lei Penal e a integridade física dos que circundam a pessoa legalmente presa, ou a dela própria.
Bem por isso, foi recentemente editada, pelo Supremo Tribunal Federal, a Súmula Vinculante nº 11, segundo a qual “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
RICARDO CARDOZO DE MELLO TUCUNDUVA
DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
PROFESSOR DA ACADEMIA DE POLÍCIA DE SÃO PAULO
Nenhum comentário:
Postar um comentário