Identificação criminal
Bancos de perfis genéticos geram polêmica no Brasil
Não decorreu nem mesmo vinte e quatro horas da publicação da lei que criou a identificação criminal mediante coleta de material genético para que as discussões começassem a surgir no meio jurídico.
A Lei n° 12.654, publicada em de 28 de maio de 2012, que altera dispositivos das Leis nos 12.037, de 1o de outubro de 2009 (identificação criminal), e 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), prevendo a coleta de perfil genético como forma de identificação criminal, pode ser um marco na discussão do princípio do nemo tenetur se detegere (direito de não produzir prova contra si mesmo), que no Brasil tem ganhado dimensões demasiado expansivas, se comparado à sua interpretação em outros países.
Em breve resumo, a lei incluiu a possibilidade de que seja realizada a coleta de material biológico para fins de formação do perfil genético, nos casos de identificação criminal considerada essencial às investigações policiais, por ordem judicial de ofício ou por representação da Autoridade Policial, do Ministério Público ou da defesa.
Foi inserido ainda o artigo 5-A, com a seguinte redação:
Art.5-A Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.
§ 1o As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos.
§ 2o Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial.
§ 3o As informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.
Assim, prevê importantes garantias acerca do banco de dados a ser criado a partir da vigência da lei, que será gerenciado por unidade técnico científica. Tais medidas são as balizas fundamentais que garantem a integridade do sistema, vedando sua utilização que não seja para os fins expressos, estabelecendo a responsabilidade pelo sigilo dos dados, com a responsabilização pela infração, bem como, em garantia suplementar, que as informações deverão ser consignadas em laudo pericial, o que lhe dá o status de prova pericial, com as regras processuais que lhe são aplicáveis, inclusive a responsabilização do perito.
Inclui ainda o artigo 7-A e 7-B que dispõe que:
Art. 7o-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito.
Art. 7o-B. A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
Por fim, prevê alteração na Lei de Execução Penal, ao dispor que:
Discussões que surgem de imediato remetem à garantia constitucional contra a autoincriminação e aqui surge o problema crucial a ser enfrentando pela doutrina e jurisprudência, no sentido de se buscar a exata dimensão de tal garantia, que no Brasil tem sido interpretada com máxima amplitude, muito superior às posições externadas, a título de exemplo, pela Corte Europeia de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Acerca dos Bancos de Dados de perfis genéticos, cabe destacar, a título de exemplo, que os Estados Unidos possuem um banco de dados com 10 milhões de perfis genéticos de indivíduos condenados e, em 26 dos 50 estados, além de coletarem amostras de condenados, também coletam amostras de DNA de detidos/suspeitos.
Esse banco de dados (CODIS) já auxiliou 169.000 investigações, conforme se pode observar na própria informação disponível no site do DBI, em http://www.fbi.gov/about-us/lab/codis/ndis-statistics.
Ao apreciar o tema da garantia contra a autoincriminação, a Suprema Corte norte-americana, no caso conhecido caso Schmerber v. California (1966), adotou a clássica distinção entre os procedimentos coativos que requerem a participação ativa do acusado daqueles em que o acusado trata-se apenas de uma simples fonte passiva de elementos de prova contra si próprio. Nessa segunda situação, entendeu não haver violação ao nemo tenetur se detegere.
Cabe citar aqui o artigo "The Ethical Protocol for Collecting DNA Samples in the Criminal Justice System" (disponível em http://oldsite.mobar.org/9a8264de-6139-4fc3-b5a0-fe8698b58d0b.aspx), no qual Jennifer Grady descreveu a interpretação nos EUA:
D. Compelled DNA Testing Does Not Violate a Criminal Defendant's Constitutional Right Against Self-Incrimination Requiring sex offenders to submit to DNA testing poses the question of whether compelled testing violates a criminal defendant's constitutional right against self-incrimination. In Schmerber v. California, the United States Supreme Court held that a defendant's constitutional right had not been violated by a compulsory blood alcohol test and its admission into evidence. The Schmerber Court ruled that, while the Fifth Amendment prohibits the state from compelling a suspect to give evidence of a testimonial or communicative nature, it does not prohibit the state from requiring a suspect to provide “real or physical evidence.” In Schmerber, the Court held that a compelled extraction of a blood sample and its chemical analysis for blood alcohol content did not amount to “testimonial or communicative” evidence and, therefore, was not prohibited by the Fifth Amendment.
Igualmente, no âmbito do Conselho da Europa, a matéria é tratada, sendo objeto, por exemplo, das Recomendações R [87] 15 de 17 de setembro de 1987 (disponível e http://www.coe.int/t/dghl/cooperation/economiccrime/organisedcrime/Rec_1987_15.pdf) e na R [92] 1, de 10 de fevereiro de 1992 (disponível em http://www.coe.int/t/dghl/cooperation/economiccrime/organisedcrime/Rec_1987_15.pdf), esta última tratando exclusivamente sobre a utilização doa análise de DNA no sistema judiciário penal, prevendo inclusive o intercâmbio internacional desses perfis, onde destaca que tais dados não podem ser utilizados para finalidade diversa que não a persecução penal.
A Recomendação R [92] 1 trata inclusive do armazenamento do caso de crimes considerados graves, previstos no novo diploma legal brasileiro, dispondo que:
The results of DNA analysis and the information so derived may, however, be retained where the individual concerned has been convicted of serious offences against the life, integrity or security of persons. In such cases strict storage periods should be defined by domestic law.
A maioria dos países membros do Conselho da Europa permite a coleta compulsória de impressões digitais e amostras de DNA no contexto do processo penal. Os bancos de dados nacionais estão previstos na Áustria, Bélgica, República Checa, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega, Polônia, Espanha, Suécia e Suíça. A coleta e armazenamento de perfis de DNA de pessoas condenadas é permitido, como regra geral, por períodos limitados de tempo, após a condenação.
Ainda no âmbito da União Européia, a matéria é tratada, por exemplo, nas Decisões-Quadro 2008/615/JAI, 2008/616/JAI e 2008/977/JAI. 45. A Diretiva 95/46/CE de 24 de Outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, prevê que o objeto das leis nacionais relativas ao tratamento de dados pessoais deve proteger o direito à privacidade, como reconhecido não só no artigo 8 º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e nos princípios gerais do direito comunitário. A diretiva estabelece ainda uma série de princípios que substanciam e ampliam os princípios contidos na Convenção de Proteção de Dados do Conselho da Europa. Permite aos Estados-Membros adotarem ainda medidas legislativas para restringir o alcance de certas obrigações e direitos previstos na diretiva, quando tal restrição constitua uma medida necessária, nomeadamente para a prevenção, investigação, detecção e repressão de infracções penais (artigo 13).
O Tratado de Prüm, por sua vez, no aprofundamento da cooperação internacional, em particular no combate ao terrorismo, a criminalidade transnacional e a migração ilegal, que foi assinado por vários membros da União Europeia em 27 de maio de 2005, estabelece regras para o fornecimento de impressões digitais e dados de DNA para outras partes contratantes.
Cabe destacar a posição da Corte Européia, ao tratar do tema dos bancos de DNA, no julgamento do caso S. and Marper vs. United Kingdom, (disponível em http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/dataprotection/Judgments/S.%20AND%20MARPER%20v.%20THE%20UNITED%20KINGDOM%20EN.pdf) onde aduz que:
105. The Court finds it to be beyond dispute that the fight against crime, and in particular against organised crime and terrorism, which is one of the challenges faced by today's European societies, depends to a great extent on the use of modern scientific techniques of investigation and identification. The techniques of DNA analysis were acknowledged by the Council of Europe more than fifteen years ago as offering advantages to the criminal justice system (see Recommendation R(92)1 of the Committee of Ministers, paragraphs 43-44 above). Nor is it disputed that the member States have since that time made rapid and marked progress in using DNA information in the determination of innocence or guilt.
Enfim, muitas são as questões que surgirão com o novo diploma legal, mas que, sem sombra de dúvida, não pode ser interpretado à luz garantismo penal integral e não do garantismo à brasileira, destinado a servir de escudo à persecução penal. Os bancos de perfis genéticos são uma realidade no resto do mundo e agora parece ser o momento a ser enfrentado no Brasil. Avancemos, ou progrediremos fatalmente ao retrocesso que tem marcado nossa persecução penal. Ou será que o país realmente está no caminho interpretativo correto, na contra-mão do resto dos demais Estados Democráticos de Direito?
Márcio Adriano Anselmo é delegado da Polícia Federal.
Guilherme Silveira Jacques é perito criminal federal.
Revista Consultor Jurídico, 2 de junho de 2012
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