quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Populismo penal e telejustiça




Como funciona a Justiça populista telemidiatizada? Nela não existe processo, sim, teleprocesso. Não há juízes, sim, telejuízes. Não já votos, sim, televotos. Não há público, sim, teleaudiência.
O aumento da violência e da delinquência é uma realidade tangível (tanto objetiva como subjetivamente) no Brasil e na América Latina. Há duas maneiras (dentre outras) de se reagir contra esse problema (que constitui a segunda preocupação dos latino-americanos, consoante pesquisa do Latinobarómetro): (a) enfocando-o como problema social (desigualdade social, políticas de exclusão, falta de trabalho, má educação, convivência urbana conflitiva etc.) ou (b) encarando-o como problema individual (o crime é fruto da maldade pessoal).
A primeira corrente está atrelada à ideologia socializante da inclusão, ou seja, confia no ser humano. A segunda deita suas raízes no ultraliberalismo norte-americano e inglês (décadas de 70 e 80), que é neoliberal na economia, neointervencionista no plano internacional e neoconservador no campo penal. Nixon e Reagan (nos EUA) e Thatcher (na Ingraterra) foram os grandes divulgadores do neoconservadorismo penal, que luta pelo fim do Estado de Bem-Estar Social assim como pelo recrudescimento do Estado penal (do estado previdência ou ao estado penitência).
Começaram com a declaração de guerra contra o crime (em 1968), fundada no movimento da lei e da ordem (law and order), que foi sucedido e complementado (desde os anos 70/80) por outros discursos: tolerância zero, inocuização total, guerra contra as drogas, guerra contra o crime organizado, direito penal da emergência, guerra contra o terrorismo, direito penal preventivo da sociedade de riscos, three strikes and you are out (pena de prisão perpétua, inclusive para quem comete três crimes, ainda que seja contra a propriedade e sem violência), direito penal do inimigo etc.
Com base nesses discursos (unicamente) repressivos deu-se a maior expansão do direito penal na modernidade. Neste contexto expansionista se insere o discurso do populismo penal, que passou a explorar o senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas geradas pelo delito assim como pelo medo do delito, buscando o consenso ou o apoio popular para exigir mais rigor penal (mais repressão, novas leis penais duras, sentenças mais severas e execução penal sem benefícios), como “solução” para o problema da criminalidade. A criminalidade não diminuiu, a violência não cessou (nem se arrefeceu), mas o discurso populista continua (e o povo, de um modo geral, o aceita).


A novidade, especialmente nesta primeira década do século XXI, no Brasil, foi a eclosão do populismo penal conservador disruptivo, que consiste em postular as mesmas medidas (pena dura de prisão, leis penais mais rigorosas, mais prisão, mais presídios etc.) para os criminosos poderosos, pertencentes às classes sociais dominantes ou superiores. Ou seja: cadeia para todo mundo, para os de baixo e para os de cima. O caso mensalão, nesse campo, constitui um divisor de águas. Acaba de nascer (com ar de definitividade) um novo paradigma de justiça, ajustado à sociedade do espetáculo (Debord). O processo se transformou num espetáculo judicial populista telemidiático.
Como funciona a Justiça populista telemidiatizada? Nela não existe processo, sim, teleprocesso. Não há juízes, sim, telejuízes. Não já votos, sim, televotos. Não há público, sim, teleaudiência. Se no campo das democracias populistas latinoamericanas o que prepondera é o telepresidente, na era da Justiça telemidiatizada o que temos é o telerelator, telerevisor etc.
Parece inegável a atração popular e política pelas teses sustentadas pelo pensamento político reacionário dos anos 80/90, que é cético em relação aos programas do “welfare state”, dá ênfase à responsabilidade individual, apresenta uma narrativa simplista de culpa do delinquente, ignora as causas de fundo do problema e vê o castigo como resposta adequada aos malvados delinquentes (seja das classes baixas, seja das classes altas).
O predomínio expansionista (conservador) é notório, a ponto de já não se falar em mero crescimento do direito penal, sim, em uma verdadeira metamorfose (Silva Sanchez). Nos primeiros anos do século XXI estão perdendo terreno (mais ainda) as teses contencionistas (minimalismo) ou abolicionistas assim como se consolidou o fim da ideologia da ressocialização. O confronto estabelecido entre o hiperpunitivismo (conservador) e o minimalismo/garantismo (liberal) está sendo decidido em favor do primeiro.
Como decorrência do expansionismo penal está em evolução (tanto nos países centrais como periféricos) um dos piores momentos históricos do poder punitivo (algo parecido à Idade Média), mas agora marcado (em grande parte) pelo fundamentalismo penal, ancorado numa aberrante inflação legislativa (no Brasil, 136 leis penais foram editadas de 1940 a 2011), que é fruto do emergencialismo punitivo (leis desproporcionais, confusas, simbólicas – do ponto de vista da proteção dos bens jurídicos; prioridade para a resposta inocuizadora ou segregativa dos selecionados, que está gerando, por sua vez, o maior encarceramento massivo sistemático de toda história.
A pergunta inevitável, depois de tanta metamorfose, é a seguinte: será que a era da telejustiça populista protagonizada por super-telejuízes será capaz de nos proporcionar um mundo melhor e mais justo? Temos nossas desconfianças, mas convidamos o estimado leitor a formar suas próprias convicções.  


Autor

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Luiz Flávio Gomes

Diretor geral dos cursos de Especialização TeleVirtuais da LFG. Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri (2001). Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP (1989). Professor de Direito Penal e Processo Penal em vários cursos de Pós-Graduação no Brasil e no exterior, dentre eles da Facultad de Derecho de la Universidad Austral, Buenos Aires, Argentina. Professor Honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria, Arequipa, Peru. Promotor de Justiça em São Paulo (1980-1983). Juiz de Direito em São Paulo (1983-1998). Advogado (1999-2001). Individual expert observer do X Congresso da ONU, em Viena (2000). Membro e Consultor da Delegação brasileira no 10º Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, em Viena (2001).

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