Estuda-se a
implementação da identificação criminal com coleta de material de perfil
genético do indiciado e a criação de banco de dados, conforme a Lei nº
12.654/2012, apontando as dificuldades na maioria dos Estados.
Resumo: Discute a
possibilidade de implementação da Identificação Criminal com coleta de material
de perfil genético do indiciado e a criação do Banco de Dados respectivo,
conforme diretrizes impostas pela Lei nº 12.654/2012, bem como aponta as
principais dificuldades que se colocam para a maioria das Unidades da
Federação.
Palavras-chave: identificação
criminal – DNA – perfil genético - banco de dados – crimes hediondos –
condenados – identificação civil – organizações criminosas – papiloscopia –
papilas decadatilares - biometria – unidades prisionais – Instituto de
Identificação – sigilo – controle judicial – investimento – iniqüidade –
custeio.
A Constituição
Federal que vigorou antes de 1988 permitia que todo indiciado em inquérito
policial fosse identificado criminalmente, o que constituía praxe obrigatória
nas Delegacias de Polícia,[1] inclusive para os autores de meras
contravenções penais, que deveriam se permitir fotografar e deixar em
formulário próprio, mediante entintamento das falanges, as marcas de suas
papilas decadatilares.
O Constituinte de
1988, entrementes, entendendo se tratar de prática abusiva, que acarretava
constrangimento desnecessário ao acusado, que nem sempre iria acabar condenado,
inseriu a restrição contida no artigo 5º, inciso LVIII, da CR,[2]
para que o civilmente identificado não se submeta à identificação criminal, a
não ser em casos previstos em lei.
A primeira
interpretação de “civilmente identificado” foi a da pessoa que tivesse deixado
seus dados de registro civil, sua fotografia, sua assinatura e suas impressões
digitais em banco de dados públicos, no processo de expedição de sua Carteira
de Identidade, no pressuposto de que, possuindo essas informações, não haveria
necessidade que o Estado as recolhesse na oportunidade do indiciamento
criminal.
Isso aconteceu até
que dois instrumentos normativos fossem editados, sucessivamente, a título de
regular a identificação criminal, determinando em quais casos seria cabível e
quais documentos seriam entendidos como identificação civil, relacionando-se,
de maneira diversa, à potencialidade ofensiva do delito imputado e à
confiabilidade do documento apresentado. (Lei nº 10.054/2000 e Lei nº
12.037/2009).
Para a Lei nº
12.037/2009, são documentos de identificação civil os elencados no seu artigo
2º, como exposto: Carteira de Identidade; Carteira de Trabalho; Carteira
Profissional; Passaporte; Carteira de Identificação Funcional; outro documento
público que permita identificação do indiciado; documentos de identificação
militar.
A regra geral é,
então, a de que possuindo qualquer das modalidades de identificação acima o
indiciado/acusado/condenado não deve ser submetido ao processo de identificação
criminal.
A mesma lei excetua e
permite a identificação criminal dos civilmente identificados quando (artigo
3º):
1. O documento
apresentar rasuras ou indícios de falsificação;
2. O documento
apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado;
3. O indiciado
possuir documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre
si;
4. Constar nos
registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes identificações;
5. O estado de
conservação, o lapso temporal ou a distância da localidade de expedição do
documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres
essenciais.
Entre os casos acima,
no inciso IV do mesmo artigo 3º,[3] figura a hipótese, que se deixou
para análise em apartado, da identificação criminal “essencial às investigações
policiais”, que só pode ser decidida, quanto a essa natureza, por Autoridade
Judiciária, “ex officio” ou a requerimento da Autoridade Policial ou de
Representante do Ministério Público, o que, na realidade, acaba por engessar
essa alternativa ao ponto quase de inviabilizar a sua prática, em face da
agilidade requerida por algumas espécies de investigação e a contraposição da
reconhecida morosidade dos processamentos judiciais.
Caso especial, em
instrumento normativo diferente, é o previsto na Lei nº 9.034/95, inspirada na
legislação italiana e americana, que dispõe sobre a utilização de meios
operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações
criminosas e, no seu artigo 5º, determina que “a identificação criminal de
pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será
realizada independentemente da identificação civil.” (realçamos).
Impõe-se, aqui, a obrigatoriedade da identificação, externada na expressão
“será realizada”, sem qualquer condicionante.
A Lei nº 12.654, de
28 de maio de 2012, alterou disposições da Lei nº 12.037/2009, incluindo em seu
artigo 5º, parágrafo único[4], autorização para que, na hipótese do
inciso IV do artigo 3º, a identificação criminal possa incluir a coleta de
material biológico para obtenção do perfil genético. Atente-se que a novel
regra não determina a coleta de material como obligatio, mas como facultas agendi,
quando se vale da expressão “poderá incluir” ao invés de “deverá incluir”. De
se notar que essa “faculdade” está restrita ao domínio do Juiz, posto que o
material de DNA – ácido desoxirribonucléico – somente poderá ser recolhido
(cabelo, saliva etc) mediante autorização judicial, em despacho motivado e
fundamentado e, também, não se aplica de forma genérica às pessoas civilmente
identificadas, constituindo-se situação inquestionavelmente excepcional. Outra
possibilidade para identificação criminal, com coleta de material genético,
imposta pela Lei nº 12.654/2012, é a do condenado[5] por crime
hediondo (L.8072/90 e L. 7210/84), ou qualquer outro praticado de forma dolosa,
com grave violência contra a pessoa, que nessa circunstância poderá estar
incluído o homicídio simples, na forma consumada ou tentada, que tem a vis
corporalis como sua essência, apesar de não definido como hediondo, mas não se
aplica aos delitos equiparados legalmente aos hediondos (art. 2º, L.8072/90),[6]
primeiro porque não se encontram no rol taxativo do artigo 1º, da Lei 8.072/90
e, segundo, porque o tráfico de drogas, por exemplo, não se utiliza, em sumária
avaliação do seu modus operandi, de grave violência física contra a pessoa.
A identificação do
sentenciado, que a lei referida denomina apenas de “condenado”, a despeito de
entendimentos doutrinários em contrário, não deverá excluir os condenados de
forma provisória, não definitiva, sem trânsito em julgado da decisão
condenatória, porque o legislador não fez essa restrição, deixando de colocar
no texto legal a adjetivação “em definitivo”, subsequente ao substantivo
condenado, quando poderia e deveria tê-lo feito, se esse fosse, realmente, o
spiritus legis. Terminantemente não se aplica aqui, como alhures alegado, o
princípio da presunção da inocência, para considerar a pessoa culpada somente
após o trânsito em julgado de sua condenação, porque a lei já autoriza a
identificação criminal dos meramente indiciados em inquérito, de autuados em
flagrante delito, de pessoas “envolvidas” com a ação praticada por organizações
criminosas, que a despeito da excepcionalidade determinada pela ausência de
documento civil ou documentação inidônea, com a máxima obviedade, não possuem
situação penal que possa ser considerada definitiva.A nova situação jurídica
decorrente da Lei nº 12.654/2012, define de forma clara que:
a) A coleta de DNA
dos indiciados continua sendo excepcional condição para os civilmente
identificados (art. 1º), considerando-se como excludentes dessa possibilidade
um rol dos mais diversos documentos, além da Carteira de Identidade;
b) A identificação
criminal com coleta de material biológico só é obrigatória para os condenados
por crimes de máxima lesividade, sendo opcional em todas as demais hipóteses,
inclusive para os integrantes de organizações criminosas;
c) A necessidade
classificada como essencial para as investigações será decidida exclusivamente
pela Autoridade Judiciária e não pela Autoridade Policial (art. 3º, IV);
d) O Banco de Dados
de DNA será gerenciado por Unidade da Perícia Criminal,[7] - leia-se
Instituto de Criminalística - quando na maioria esmagadora dos Estados a
administração de informações sobre identificação civil ou criminal das pessoas
é de incumbência dos Institutos de Identificação (art. 5º A);
e) A constatação das
evidências de perfis genéticos deverá ser consignada em laudo firmado por
Perito Oficial,[8] excluindo-se por lógica primária, que o confronto
de dados seja promovido pelos Papiloscopistas, Datiloscopistas, Identificadores
ou de servidores com essa qualificação, de instrução de nível superior. No
contexto anterior ao novo comando legal, estes eram os únicos incumbidos de
atestar e certificar seus achados nas pesquisas para individualização das
pessoas, por meio de seus dados biométricos ou marcas papilares, nos Institutos
de Identificação da maioria das Unidades da Federação ou nos Núcleos de
Identificação da Polícia Federal (art. 5º § 3º);
f) O Banco de Dados
terá caráter sigiloso[9] e as Autoridades Policiais, Estaduais ou
Federais, só terão acesso às suas informações, com inquérito instaurado,
mediante autorização judicial, não sendo de sua livre utilização e de inteira
acessibilidade, como os demais dados de identificação, submetendo o seu uso,
mais uma vez, aos difíceis fluxos burocráticos do judiciário, decretando,
assim, a sua baixíssima ou quase nenhuma utilidade para o Sistema de Justiça
Criminal (art. 9º A, §2º, da L. 7.210/84).
A Polícia Civil e o
Ministério Público, a dona da investigação e o fiscal dessa atividade, foram
abolidos sumariamente do poder dominial sobre o arquivo de informações que lhes
poderia e deveria servir como manancial inesgotável de evidências materiais,
científicas, para instrumentalização de suas atribuições constitucionais.
O universo de pessoas
condenadas criminalmente em Minas Gerais é dos maiores do país, ficando a cargo
da Subsecretaria de Administração Prisional (Suapi),[10] que é
responsável por gerir 27.965 presos, em 128 unidades prisionais de Minas Gerais,
entre complexos penitenciários, penitenciárias, presídios, casas de albergados,
hospitais e centros de apoio. Além disso, mantém 2.497 vagas em Associações de
Proteção e Assistência aos Condenados (Apac). Dá pra se ter idéia da extensão
do trabalho e do custo econômico para se promover a identificação de toda essa
massa carcerária, em que não se incluem os presos provisórios, em número que
supera os 15.000, em Cadeias Públicas, sob gerenciamento da Polícia Civil.
Em face de diversos
aspectos polêmicos e complexos que a Lei nº 12.654/2012 apresenta para seu
atendimento pela Polícia Civil, que deverá criar, instalar e manter, às suas
expensas, o Banco de Dados de DNA, de exclusivo domínio do Judiciário, bem como
que a mesma lei depende de decreto,[11] que deverá ser expedido pelo
Executivo Federal, para disciplinar seu funcionamento e demais medidas de
implementação, deixando o assunto envolto em inquestionável nebulosidade, somos
por concluir pela conveniência de que investimentos de maior porte somente
sejam alocados após completa definição do tema através do instrumento normativo
que se aguarda.
O Banco de Dados de
DNA, como definido em lei, anacronicamente se distancia da lógica do
compartilhamento das informações entre as Instituições que dele necessitam e
por ele se interessam, além de distribuir o ônus de sua manutenção e o bônus de
seu uso, de maneira completamente iníqua entre o Executivo e o Judiciário,
devendo por isso ainda ser alvo de muitas e merecidas críticas.
Notas
[1]Art. 6º Logo que
tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:
... VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se
possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes (CPP).
[2] “o civilmente
identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses
previstas em lei.”
[3] Art. 3º Embora
apresentado documento de identificação, poderá ocorrer identificação criminal
quando: ...
IV- a identificação
criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da
autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante
representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa;
[4] “Parágrafo único. Na
hipótese do inciso IV do artigo 3º, a identificação criminal poderá incluir a
coleta de material biológico para obtenção de perfil genético.”
[5] Art. 9º-A. Os
condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave
contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da Lei nº 8.072,
de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do
perfil genético, mediante extração de DNA – ácido desoxirribonucléico, por técnica
adequada e indolor.
[6] Os crimes de tráfico
ilícito de entorpecentes, tortura e terrorismo, mesmo não se incluindo na
relação de crimes hediondos da Lei nº 8.072/90, são a eles equiparados, pois
também são delitos cuja lesividade é acentuadamente expressiva.
[7] Art. 5º-A. Os dados
relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de
dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.
[8] § 3º As informações
obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em
laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.
[9] §2º A autoridade
policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de
inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil
genético.
[10] (www.seds.mg.gov.br
, consulta em 02 Nov 2012);
[11] Art. 7º-B. A
identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso,
conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
Autor
Delegado de Polícia
(aposentado). Mestre em Administração Pública/FJP. Especialista em
Criminologia, Direito Penal e Processual Penal. Professor do Centro
Universitário Metodista de Minas. Assessor Jurídico da Polícia Civil/MG
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
LOPES, João. Identificação
criminal: banco de dados de DNA (Lei nº 12.654/2012). Jus Navigandi,
Teresina, ano
17, n.
3424, 15nov. 2012 .
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23022>. Acesso em: 17 nov. 2012.
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