domingo, 12 de janeiro de 2014

Maranhão e seus presídios (o Brasil em miniatura)




A reforma do Código Penal, fundada no pensamento mitológico (mágico), emocional e passional (Durkheim), está seguindo duas equivocadas premissas: leis mais severas e encarceramento massivo (sobretudo das “classes perigosas”, não violentas)

“Nas costas de um dos corpos, de bruços, estão duas cabeças, lado a lado. Elas são exibidas como troféus. Ao lado, o terceiro decapitado ainda tem a cabeça encostada ao pescoço. Um dos presos grita: “Bota de frente pra filmar direito”. Outro pede: “Não puxa a cabeça dele”. Em vão. Um outro colega, também de chinelos, enfia os pés na poça de sangue, se aproxima e, com a ponta dos dedos, ergue a cabeça, puxada pelos cabelos. A cabeça escapa, cai no chão, mas é erguida novamente e colocada ao lado das outras. Os presos mantêm o clima de comemoração”. Tudo isso foi filmado e mostrado pela Folha (7/1/14, p. C1).

É o inferno de Dante (Divina comédia): “Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno”. Os presídios maranhenses (com 60 assassinatos no último ano) assim como o próprio governo do Maranhão (há 50 anos nas mãos desgovernadas dos Sarneys) são o retrato (uma miniatura) do Brasil, um país injusto, classista, racista, violento, corrupto, patrimonialista, nepotista, desdentado, subnutrido e analfabeto (3/4 dos brasileiros não sabem ler ou escrever ou entender o que leem ou fazer operações matemáticas mínimas – ver relatório do Inaf).

De 1980 a 2011, 1.145.651 pessoas assassinadas (ver Instituto Avante Brasil). Um mar de sangue. Há 400 mil anos (pré-história), 1/3 do Brasil era puro mar. Incluindo o Maranhão inteiro. Hoje é tudo sangue. Um mar de sangue. O Brasil não se converteu no 16º país mais violento do planeta (conforme o UNODC-ONU) por acaso. Tem toda uma história (de violência, de prepotência, de autoritarismo, de desrespeito à vida, de degeneração ética, de domínio classista injusto, desde o colonialismo). O sistema penitenciário brasileiro constitui uma síntese desse lado do Brasil que deu errado.

Os presídios, com prisões determinadas pelos juízes, são uma invenção da burguesia capitalista ascendente do século XVIII. Nasceram para disciplinar as pessoas para o trabalho assalariado.  Corpos dóceis e úteis (Foucault). Para eles eram mandados os vagabundos, carentes, marginalizados, criminosos etc. Local de educação (se imaginava). Logo se viu que lugar de educar é na escola. As novas burguesias dominantes, no entanto, continuaram mandando para as prisões todas as “classes perigosas” (conceito do final do século XIX), mesmo que não tenham cometido nenhum crime violento. Mais de 50% dos presos, hoje, não praticaram crimes violentos. Lá estão amontoados, jogados como coisas. O sistema não ressocializa, brutaliza. O sistema não reeduca, aumenta o número de soldados para o crime organizado.

A política do encarceramento massivo (aumento de 508% nas prisões de 1990 a 2012), paralelamente à da edição de leis penais novas mais severas (150 reformas de 1940 a 2013), continua a todo vapor, estimulada pela fascista criminologia populista-midiática-vingativa (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013), que constitui a fonte de inspiração da burguesia dominante legislativa (que cuida do processo de criminalização primária).

A reforma do Código Penal, fundada no pensamento mitológico (mágico), emocional e passional (Durkheim), está seguindo exatamente essas duas equivocadas premissas: (a) leis mais severas e (b) encarceramento massivo (sobretudo das “classes perigosas”, não violentas). As políticas alternativas (prisão somente para criminosos violentos + sistema da pena suave, justa e certa – Beccaria) não são consideradas. Reforma penal na contramão da nova história. Nova história que deve ser construída para o salvamento do sistema capitalista e das burguesias governantes, se é que querem ser mantidos.

Sugere-se a seguinte tese: o sistema econômico capitalista (o pior de todos, com exceção dos demais), cada vez mais contestado no mundo todo (ocidental e oriental), em razão das suas fraudes (como a de 2008), denominadas de “crises”, bem como em virtude das suas injustiças e desigualdades profundas (com a consequente divisão de classes), está cavando seu próprio abismo (sua própria morte) na proporção em que aumenta a burrice, a irracionalidade e as improvisações das classes burguesas dominantes e governantes.

Tese 2: é especialmente no campo criminológico e político criminal, hoje inteiramente dominado pela criminologia populista-midiática-vingativa, fundada na emotividade e passionalidade decorrentes do delito (como descreveu Durkheim), onde se nota com mais evidência a irracionalidade do pensamento mitológico.

Tese 3: precisamente nos países mais violentos do planeta, a burguesia dominante vem conduzindo o processo de criminalização primária (produção da legislação penal) e secundária (atuação seletiva da polícia, Ministério Público, juízes etc.) de forma totalmente equivocada. Isso está mais do que evidente, uma vez mais, no processo de reforma do Código Penal brasileiro, que novamente está iludindo a população com a oferta de dois produtos fraudulentos (quando pensamos em efeitos preventivos): (a) endurecimento das leis penais e (b) encarceramento massivo.

Tese 4: essa política fraudulenta (porque totalmente ineficaz a médio ou longo prazo) está agravando diária e assustadoramente a situação desses países e dos seus presídios, vergastados pela violência epidêmica, porque, enquanto ilude a população com cosméticos e placebos charlatões, adia o enfrentamento racional do problema da segurança e da criminalidade. 

Autor

  • Luiz Flávio Gomes


Diretor geral dos cursos de Especialização TeleVirtuais da LFG. Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri (2001). Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP (1989). Professor de Direito Penal e Processo Penal em vários cursos de Pós-Graduação no Brasil e no exterior, dentre eles da Facultad de Derecho de la Universidad Austral, Buenos Aires, Argentina. Professor Honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria, Arequipa, Peru. Promotor de Justiça em São Paulo (1980-1983). Juiz de Direito em São Paulo (1983-1998). Advogado (1999-2001). Individual expert observer do X Congresso da ONU, em Viena (2000). Membro e Consultor da Delegação brasileira no 10º Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, em Viena (2001).

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):

GOMES, Luiz Flávio. Maranhão e seus presídios (o Brasil em miniatura). Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3846, 11 jan. 2014 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26371>. Acesso em: 12 jan. 2014.

 

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