A reforma do Código Penal, fundada no
pensamento mitológico (mágico), emocional e passional (Durkheim), está seguindo
duas equivocadas premissas: leis mais severas e encarceramento massivo
(sobretudo das “classes perigosas”, não violentas)
“Nas costas de um dos corpos, de
bruços, estão duas cabeças, lado a lado. Elas são exibidas como troféus. Ao
lado, o terceiro decapitado ainda tem a cabeça encostada ao pescoço. Um dos
presos grita: “Bota de frente pra filmar direito”. Outro pede: “Não puxa a
cabeça dele”. Em vão. Um outro colega, também de chinelos, enfia os pés na poça
de sangue, se aproxima e, com a ponta dos dedos, ergue a cabeça, puxada pelos
cabelos. A cabeça escapa, cai no chão, mas é erguida novamente e colocada ao
lado das outras. Os presos mantêm o clima de comemoração”. Tudo isso foi
filmado e mostrado pela Folha (7/1/14, p. C1).
É o inferno de Dante (Divina comédia):
“Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno”. Os presídios
maranhenses (com 60 assassinatos no último ano) assim como o próprio governo do
Maranhão (há 50 anos nas mãos desgovernadas dos Sarneys) são o retrato (uma
miniatura) do Brasil, um país injusto, classista, racista, violento, corrupto,
patrimonialista, nepotista, desdentado, subnutrido e analfabeto (3/4 dos
brasileiros não sabem ler ou escrever ou entender o que leem ou fazer operações
matemáticas mínimas – ver relatório do Inaf).
De 1980 a 2011, 1.145.651 pessoas
assassinadas (ver Instituto Avante Brasil). Um mar de sangue. Há 400 mil anos
(pré-história), 1/3 do Brasil era puro mar. Incluindo o Maranhão inteiro. Hoje
é tudo sangue. Um mar de sangue. O Brasil não se converteu no 16º país mais
violento do planeta (conforme o UNODC-ONU) por acaso. Tem toda uma história (de
violência, de prepotência, de autoritarismo, de desrespeito à vida, de
degeneração ética, de domínio classista injusto, desde o colonialismo). O
sistema penitenciário brasileiro constitui uma síntese desse lado do Brasil que
deu errado.
Os presídios, com prisões determinadas
pelos juízes, são uma invenção da burguesia capitalista ascendente do século
XVIII. Nasceram para disciplinar as pessoas para o trabalho assalariado.
Corpos dóceis e úteis (Foucault). Para eles eram mandados os vagabundos,
carentes, marginalizados, criminosos etc. Local de educação (se imaginava).
Logo se viu que lugar de educar é na escola. As novas burguesias dominantes, no
entanto, continuaram mandando para as prisões todas as “classes perigosas”
(conceito do final do século XIX), mesmo que não tenham cometido nenhum crime
violento. Mais de 50% dos presos, hoje, não praticaram crimes violentos. Lá
estão amontoados, jogados como coisas. O sistema não ressocializa, brutaliza. O
sistema não reeduca, aumenta o número de soldados para o crime organizado.
A política do encarceramento massivo
(aumento de 508% nas prisões de 1990 a 2012), paralelamente à da edição de leis
penais novas mais severas (150 reformas de 1940 a 2013), continua a todo vapor,
estimulada pela fascista criminologia populista-midiática-vingativa (veja nosso
livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013), que constitui a fonte de
inspiração da burguesia dominante legislativa (que cuida do processo de
criminalização primária).
A reforma do Código Penal, fundada no
pensamento mitológico (mágico), emocional e passional (Durkheim), está seguindo
exatamente essas duas equivocadas premissas: (a) leis mais severas e (b)
encarceramento massivo (sobretudo das “classes perigosas”, não violentas). As
políticas alternativas (prisão somente para criminosos violentos + sistema da
pena suave, justa e certa – Beccaria) não são consideradas. Reforma penal na
contramão da nova história. Nova história que deve ser construída para o
salvamento do sistema capitalista e das burguesias governantes, se é que querem
ser mantidos.
Sugere-se a seguinte tese: o sistema
econômico capitalista (o pior de todos, com exceção dos demais), cada vez mais
contestado no mundo todo (ocidental e oriental), em razão das suas fraudes
(como a de 2008), denominadas de “crises”, bem como em virtude das suas
injustiças e desigualdades profundas (com a consequente divisão de classes),
está cavando seu próprio abismo (sua própria morte) na proporção em que aumenta
a burrice, a irracionalidade e as improvisações das classes burguesas
dominantes e governantes.
Tese 2: é especialmente no campo
criminológico e político criminal, hoje inteiramente dominado pela criminologia
populista-midiática-vingativa, fundada na emotividade e passionalidade
decorrentes do delito (como descreveu Durkheim), onde se nota com mais
evidência a irracionalidade do pensamento mitológico.
Tese 3: precisamente nos países mais
violentos do planeta, a burguesia dominante vem conduzindo o processo de
criminalização primária (produção da legislação penal) e secundária (atuação
seletiva da polícia, Ministério Público, juízes etc.) de forma totalmente
equivocada. Isso está mais do que evidente, uma vez mais, no processo de
reforma do Código Penal brasileiro, que novamente está iludindo a população com
a oferta de dois produtos fraudulentos (quando pensamos em efeitos
preventivos): (a) endurecimento das leis penais e (b) encarceramento massivo.
Tese 4: essa política fraudulenta
(porque totalmente ineficaz a médio ou longo prazo) está agravando diária e
assustadoramente a situação desses países e dos seus presídios, vergastados
pela violência epidêmica, porque, enquanto ilude a população com cosméticos e
placebos charlatões, adia o enfrentamento racional do problema da segurança e
da criminalidade.
Autor
Diretor geral dos
cursos de Especialização TeleVirtuais da LFG. Doutor em Direito Penal pela
Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri (2001). Mestre em
Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP
(1989). Professor de Direito Penal e Processo Penal em vários cursos de
Pós-Graduação no Brasil e no exterior, dentre eles da Facultad de Derecho de la
Universidad Austral, Buenos Aires, Argentina. Professor Honorário da Faculdade
de Direito da Universidad Católica de Santa Maria, Arequipa, Peru. Promotor de
Justiça em São Paulo (1980-1983). Juiz de Direito em São Paulo (1983-1998).
Advogado (1999-2001). Individual expert observer do X Congresso da ONU, em
Viena (2000). Membro e Consultor da Delegação brasileira no 10º Período de
Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, em Viena
(2001).
Informações sobre o
texto
Como citar este texto
(NBR 6023:2002 ABNT):
GOMES, Luiz Flávio. Maranhão e seus
presídios (o Brasil em miniatura). Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3846, 11 jan. 2014 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26371>. Acesso em: 12 jan.
2014.
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