O Estatuto da Criança e do Adolescente nasceu em 1990 com o objetivo de atender ao mandado expresso no artigo 227, da Constituição da República que dispõe, de um modo geral, sobre a proteção à criança e ao adolescente.
A Constituição afirma no artigo adrede mencionado que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, à alimentação, à dignidade, ao lazer, à profissionalização, à cultura e ao respeito. Assim, foi elaborada a Lei 8.069/90 para atender de uma forma mais especializada as necessidades dos menores de idade, que constituem o futuro e a esperança de qualquer nação.
Levando em conta a importância da criança e do adolescente para o Estado, o legislador constituinte optou por cuidar, ele próprio, de alguns pontos relevantes no que tange a esse assunto. Salta aos olhos, por exemplo, o §4º, do artigo 227, da Constituição da República, que traz em seu conteúdo um mandado expresso de criminalização para se punir severamente o abuso, a violência e a exploração sexual dos menores de idade.
Sobre esse assunto, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves nos ensina que
“os mandados expressos de criminalização trazem decisões constitucionais sobre a maneira como deverão ser protegidos direitos fundamentais. A atuação do legislador no sentido de promover a proteção desses direitos recebe um elemento de vinculação. Ele pode até valer-se de outros instrumentos, mas a previsão de sanções penais perde seu caráter de subsidiariedade e torna-se obrigatória. Ordens diretas que são ao legislador para que atenda ao comando constitucional, a necessidade da edição de lei é questão de supremacia da Constituição.”
Em obediência a este mandado expresso de criminalização, foram criados, entre outros, os seguintes tipos penais: artigo 217-A (estupro de vulnerável), caput; artigos 218, 218-A (satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente) e 218-B (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável), todos do Código Penal; e artigo 244-B (corrupção de menores) do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.
Da mesma forma, o poder constituinte originário também estabeleceu no artigo 228, da Constituição da República, a inimputabilidade dos menores de dezoito anos, sendo estes sujeitos às normas da legislação especial. Diante desses dois exemplos, já podemos enxergar com clareza a importância que o legislador constituinte deu para todos os assuntos que envolvem os menores de idade.
Assim, foi com esse espírito que veio a lume em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por meio deste estatuto protetor, o menor torna-se sujeito de muitos direitos que não lhe eram conferidos anteriormente, salientando que a proteção dada pela lei deve abranger todas as suas necessidades, propiciando o desenvolvimento de sua personalidade de maneira digna.
Conforme mencionamos alhures, o artigo 228, da Constituição da República, estabelece que os menores de dezoito anos são inimputáveis, não podendo se submeter às penas previstas no Código Penal, o que impossibilita a sua prisão em flagrante.
Dessa forma, o menor de idade não comete crime, mas ato infracional, estando sujeito às medidas sócio-educativas previstas no artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente. É mister salientar que, de acordo com o artigo 2° do Estatuto, considera-se criança a pessoa com até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquele entre doze e dezoito anos de idade. Assim, somente o adolescente pratica ato infracional e fica sujeito às medidas sócio-educativas. A criança, por outro lado, pratica desvio de conduta e se sujeita apenas às medidas previstas no artigo 101 do Estatuto (ex: encaminhamento aos pais ou responsáveis mediante termo de responsabilidade, orientação, apoio, acompanhamento temporários etc.).
Entre as medidas sócio-educativas do artigo 112, a mais grave é a que prevê a internação do adolescente infrator em estabelecimento educacional. A referida medida tem caráter excepcional e de brevidade, uma vez que restringe a liberdade do menor. O artigo 121 do estatuto protetor da criança e do adolescente dispõe, inclusive, que a internação não poderá exceder o prazo máximo de três anos, sendo compulsória a liberação do menor que completar vinte e um anos de idade.
Aqui chegamos ao ponto principal deste ponto, que é, justamente, a análise de atos infracionais sujeitos à medida sócio-educativa de internação, mais especificamente nos casos em que o menor é detido em flagrante de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas.
Primeiramente, devemos atentar para o fato de que o menor surpreendido na prática de uma conduta prevista como criminosa não é preso, mas apreendido. Isso, pois, conforme salientamos anteriormente, o menor de idade não comete crime, mas ato infracional.
O artigo 172, do Estatuto, prevê que o adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será imediatamente encaminhado para a autoridade policial competente. A autoridade a que se refere o artigo é o Delegado de Polícia que, ao tomar ciência dos fatos, deve deliberar de acordo com sua convicção jurídica, atuando como um operador do Direito e garantidor dos direitos fundamentais do menor envolvido no caso.
Já o artigo 173, do Estatuto, estabelece que, em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa, cabe a Autoridade Policial lavrar, após ouvir todos os envolvidos e formar a sua convicção, o auto de apreensão em desfavor do menor, bem como tomar todas as medidas cabíveis para comprovação da materialidade e autoria da infração.
À primeira vista, fica a impressão de que o adolescente infrator somente poderá ser apreendido no caso de atos infracionais cometidos mediante violência ou grave ameaça a pessoa (ex. roubo, homicídio etc.) e, nos demais casos, o auto de apreensão seria substituído por um boletim de ocorrência circunstanciado.
Contudo, o artigo 174 do Estatuto da Criança e do Adolescente deixa claro que o menor poderá ser apreendido, outrossim, em virtude da gravidade do ato infracional praticado ou nos casos em que haja repercussão social, sendo esta medida tomada pela Autoridade Policial para garantir a segurança pessoal do próprio menor ou para manter a ordem pública. Senão, vejamos:
“Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.”
“Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.”
Diante deste artigo, o Delegado de Polícia, operador do Direito e primeiro garantidor dos Direitos fundamentais na fase pré-processual, analisa o caso que lhe é apresentado e opta, de acordo com seu convencimento, pela apreensão ou não do adolescente infrator, tendo como base uma interpretação a contrario sensu da parte final do texto legal em enfoque.
Com relação ao crime de tráfico de drogas, por exemplo, não podemos olvidar que se trata de um delito erigido à categoria de infração hedionda devido à gravidade do fato e também da repugnância social que este comportamento acaba gerando. Demais disso, devemos ressaltar que a degradação causada pela droga ilícita não se limita ao mero usuário que, não raro, figura apenas como uma vítima dos traficantes de drogas, os quais, na verdade, atuam como os verdadeiros responsáveis pela destruição de inúmeras vidas inocentes.
Assim, a retirada do menor infrator do convívio com outros traficantes por meio de sua apreensão, constitui medida adequada até mesmo para a proteção do próprio menor que, ao se afastar dos reais criminosos, tem uma chance de se recuperar e abandonar a vida do crime.
Sobre os crimes hediondos e sua repercussão social, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves conclui que tais crimes “foram incluídos ao lado de outras condutas que têm em comum o desafio ao Estado Democrático de Direito a à ordenação social dele advinda. Eles são aqueles que repercutem intensamente na vida social, para além da objetividade jurídica diretamente tutelada, pondo em questão a capacidade de prevenção e repressão desta ordenação estatal. São crimes nos quais a reiteração e eventual impunidade têm efeito social desagregador e criminógeno, desfavorecendo intensamente o império de lei.”
Comprovando os ensinamentos do supracitado autor, devemos lembrar que os traficantes de drogas têm se valido constantemente de menores de idade para efetuar o comércio de entorpecentes, contando, para tanto, com a impunidade que a lei teoricamente fornece aos adolescentes infratores.
Para comprovar esse fato, basta uma breve análise do dia a dia de um distrito policial. O Delegado de Polícia depara-se constantemente com casos em que adolescentes estão envolvidos com o tráfico de drogas. Há menores infratores que antes mesmo de completarem dezoito anos de idade, já possuem diversas passagens por um plantão policial, sendo que a impunidade os leva a fazer do tráfico de drogas um meio de vida.
Alguns infratores chegam até a rir dos policiais envolvidos na ocorrência, pois sabem que, na maioria dos casos, vão sair da Delegacia de mãos dadas com os pais. Sendo assim, é impossível negar a repercussão social gerada nesses casos, uma vez que a impunidade do menor infrator acaba servindo de estímulo para a prática do crime, fortalecendo ainda mais o comércio das drogas ilícitas.
Alguns infratores chegam até a rir dos policiais envolvidos na ocorrência, pois sabem que, na maioria dos casos, vão sair da Delegacia de mãos dadas com os pais. Sendo assim, é impossível negar a repercussão social gerada nesses casos, uma vez que a impunidade do menor infrator acaba servindo de estímulo para a prática do crime, fortalecendo ainda mais o comércio das drogas ilícitas.
Se não bastasse esse argumento da repercussão social do fato para fundamentar a apreensão dos menores de idade, é curial salientar que o artigo 174, do Estatuto, também permite a apreensão do menor de acordo com a gravidade do ato infracional praticado. Assim, Roberto João Elias ensina que “no que tange a gravidade do ato infracional, o melhor meio de efetuar sua identificação é verificar, no Código Penal, nos delitos catalogados, aqueles que são passíveis de pena de reclusão e os que têm uma maior dosagem penal.”
Ora, em se tratando de crime equiparado a hediondo, como é o caso do tráfico de drogas, não restam dúvidas sobre a gravidade do ato, já que aqueles são os crimes mais graves previstos na legislação pátria. Da mesma forma, outros crimes punidos com pena de reclusão poderão dar ensejo à apreensão do menor pelo Delegado de Polícia, como, por exemplo, no crime de porte de arma de fogo.
Em sentido contrário, defendendo a impossibilidade da apreensão de adolescente no caso de ato infracional análogo ao tráfico de drogas, é o escólio de Eduardo Cabette, senão vejamos:
“não é possível que uma mera apreensão provisória seja determinada em casos, ainda que graves, tais como no tráfico de drogas, não importando nessas circunstâncias nem mesmo se o adolescente é reincidente ou se está desobedecendo outras medidas anteriormente impostas. Isso não é matéria a ser aferida nesse momento e muito menos pela Autoridade Policial. É missão precípua do Juiz da infância e da Juventude em conjunto com o Ministério Público para a determinação da medida sócio-educativa adequada, legal e proporcional ao caso concreto, de acordo com os ditames do artigo 122, I a III do ECA e somente no momento da eventual condenação do adolescente pela prática do ato infracional que lhe é imputado”.
“não é possível que uma mera apreensão provisória seja determinada em casos, ainda que graves, tais como no tráfico de drogas, não importando nessas circunstâncias nem mesmo se o adolescente é reincidente ou se está desobedecendo outras medidas anteriormente impostas. Isso não é matéria a ser aferida nesse momento e muito menos pela Autoridade Policial. É missão precípua do Juiz da infância e da Juventude em conjunto com o Ministério Público para a determinação da medida sócio-educativa adequada, legal e proporcional ao caso concreto, de acordo com os ditames do artigo 122, I a III do ECA e somente no momento da eventual condenação do adolescente pela prática do ato infracional que lhe é imputado”.
Apensar do excelente raciocínio desenvolvido pelo citado autor, que se pauta, inclusive, na ausência de violência ou grave ameaça do crime de tráfico de drogas, mas não podemos concordar! Entendemos que, por meio de uma interpretação sistemática do ECA, a apreensão do adolescente infrator seria possível pela simples inteligência do artigo 174, parte final, do Estatuto, uma vez que este dispositivo é especial em relação ao artigo 122, que prevê a internação apenas no caso de delitos cometidos mediante violência ou grave ameaça.
Ora, o artigo 174 trata especificamente da apreensão de adolescente infrator pelo Delegado de Polícia, constituindo uma exceção ao próprio artigo 173, que também faz menção aos delitos cometidos com violência ou grave ameaça. Fica claro, portanto, que a intenção do legislador foi permitir a apreensão cautelar do menor de maneira excepcional e independentemente do ato infracional haver sido praticado com violência ou grave ameaça a pessoa, desde que, é claro, seja um caso grave ou de grande repercussão social, nos termos da parte final do artigo 174.
Para aqueles que não se contentarem com o argumento adrede mencionado, defendemos, ademais, que o delito de tráfico de drogas apresenta uma violência difusa, que não se materializa especificamente contra pessoas determinadas, mas que acaba atingindo toda a sociedade, que fica exposta à violência gerada pelo tráfico e seus usuários. Prova disso é o fato de que as estatísticas costumam medir o índice de violência de uma região com base no número de homicídios. Nesse contexto, os diversos assassinatos ligados ao tráfico acabam gerando uma inevitável sensação de insegurança dentro da sociedade, que é obrigada a conviver com a violência imposta pelos traficantes. Da mesma forma, a sociedade também fica à mercê da violência dos usuários de droga, que não medem esforços para sustentar o seu vício, voltando suas ações, não raro, contra os seus próprios familiares.
Subsidiando ainda mais a possibilidade de internação de adolescente envolvido com o tráfico de drogas, lembramos que o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 492, cujo conteúdo estabelece que: “O ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente.” Conforme se percebe, este egrégio Tribunal não vê qualquer óbice à internação de adolescente por ato infracional análogo ao tráfico de drogas, destacando, apenas, que a referida medida não deve ser imposta de maneira obrigatória.
Por tudo isso, entendemos perfeitamente possível a apreensão de menores de idade por ato infracional análogo ao tráfico de drogas. Parece-nos que, agindo dessa forma, a Autoridade de Polícia Judiciária atua como um guardião dos interesses do menor, zelando pela sua segurança e propiciando o melhor para o seu desenvolvimento digno, o que está absolutamente de acordo com o previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição da República.
REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2010.
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Editora Fórum. 2007.