A admissão das ações do agente infiltrado na forma de atipicidade conglobante
não é livre de críticas sob o ponto de vista moral da atuação estatal, mas, ao
menos juridicamente, é uma explicação mais plausível ou, talvez, um véu sutil
para ocultar sua inviabilidade.
O artigo 13 da Lei do Crime Organizado afirma que se o agente infiltrado
não atuar com proporcionalidade em relação à finalidade da investigação,
responderá pelos excessos praticados. No decorrer da legislação se percebe que
toda a atuação do agente é permitida, inclusive seu envolvimento em atos
criminosos, de acordo com o reconhecimento da excludente de culpabilidade de
“inexigilibilidade de conduta diversa”. Ora, como em toda excludente, podem
ocorrer excessos, os quais são puníveis. O grande problema, não somente da
legislação brasileira como da internacional ao regular a infiltração é a falta
de clareza sobre os limites de atuação dos agentes, o que torna sua atividade
não somente arriscada sob o ponto de vista dos criminosos, mas também sob o
aspecto administrativo e de responsabilidade criminal pessoal. A tensão a que
estará submetido um agente desses é sobre – humana e esta é uma das
razões pelas quais esse instituto parece bastante inconveniente.
Pode parecer que a falta de uma determinação legal exata dos limites da
atuação seja uma tibieza da legislação pátria e de outros países, mas, em
verdade, se entende que isso integra de forma inextrincável a própria natureza
da infiltração, sendo impossível ao legislador manifestar-se de forma
exaustiva, prevendo todas as situações concretas. Exatamente por isso é um
instituto indesejável. A única saída seria permitir ao agente infiltrado toda e
qualquer atuação criminosa, inclusive o homicídio. Mas, que sociedade estaria
disposta a tanto? Que legislador teria a ousadia para isso? E, principalmente,
isso seria algo admissível num Estado de Direito sob o ângulo da moralidade
administrativa e da legalidade? Até mesmo com relação a outras questões como a
vedação da pena de morte (já que o agente teria uma “licença para matar” – o
que já foi título de filme hollywoodiano estrelado por Denzel Washington)? Quem
gostaria de ter um agente estatal com carta branca para roubar, matar, estuprar
livremente? Mas, fora disso é impossível regular com precisão os limites da
atuação do agente infiltrado. A verdade é que o meio de prova da infiltração
pretende realizar o impossível e já dizia um velho brocardo latino que “Ad
impossibilia Nemo tenetur” (“Ninguém é obrigado a fazer o impossível”, nem
mesmo o legislador).
Institutos como a infiltração violam o que Gomá denomina de “imperativo
de exemplaridade” que gravita sobre os funcionários e a administração pública,
especialmente a da Justiça. Administrando negócios alheios, ou seja, a
denominada “coisa pública”, incorrem em responsabilidade de ordem legal. Mas,
essa “exemplaridade do funcionário público e da administração pública (da
Justiça) também decorre de uma responsabilidade moral que está nas entrelinhas,
de forma a submetê-los a comportamentos de honestidade e decoro. Nesse passo,
aos agentes públicos cabe o “imperativo de exemplaridade” no sentido de serem
modelos para o cidadão. Na dicção do autor:
“De uma y outra fuente se deduce que del funcionario se espera no solo
que observe estrictamente la ley positiva sino también que practique
valores como la imparcialidad, la independência, la esquidad, la lealtad,
la anteposisición del interes general al próprio o la probidad en el servicio
público”. [1]
Ora, a indagação que não se pode calar é a seguinte: que espécie de
“exemplaridade pública” se pode esperar de um instituto para o qual é
necessário prever e regular exatamente a atuação mimética do policial em
relação ao deliquente no cometimento das mesmas infrações penais que este
último?
Retomando a temática do instituto que levaria à impunidade do agente
infiltrado por eventuais crimes perpetrados durante a infiltração, é expresso o
artigo 13, Parágrafo Único, ao afirmar que este estaria acobertado pela
excludente de culpabilidade da “inexigibilidade de conduta diversa”, o que
ensejaria “falta de justa causa” para eventual ação penal. Trata-se de um caso
de inexigibilidade de conduta diversa legal, pois que previsto expressamente na
Lei 12.850/13. Faz-se essa observação porque na doutrina se encontra a
distinção entre a inexigibilidade de conduta diversa legal (prevista em lei) e
inexigibilidade de conduta diversa supralegal (aplicável a certos casos
concretos imprevistos). [2]
Importa ainda anotar que a própria opção legislativa pelo reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa como forma de evitar a punição do agente infiltrado por seus atos proporcionais também não segue o melhor caminho. É que esse instituto retrata uma excludente de culpabilidade, o que significa que o Estado está afirmando que o agente pratica fato típico e antijurídico (injusto penal), somente não culpável. Soa muito estranha essa opção, já que o policial atua por determinação estatal e de acordo com um instituto legalmente previsto. O reconhecimento das ações do agente infiltrado como mera inexigibilidade de conduta diversa significa mais um indicativo, na sua faceta teórica, de que o instituto é falido desde o seu nascedouro.
O mínimo que se pode entender é que a dicção legal é inadequada e deve
ser objeto de uma releitura doutrinária. Na verdade as condutas aparentemente
criminosas perpetradas pelo agente infiltrado, dentro de uma proporcionalidade
e, portanto, permitidas e até mesmo incentivadas pela legislação respectiva,
configuram aquilo que Zaffaroni e Batista denominam de “atipicidade
conglobante”, a afastar, desde logo a tipicidade da conduta e não a reconhecer
mera excludente da culpabilidade. [3] Do contrário, a paga social do agente
infiltrado pelo arriscar da própria vida, seria sua insegurança perpétua e,
para além disso, seu reconhecimento pelo Estado como um criminoso que somente
não seria punível! Simbólica e moralmente isso é um reconhecimento mais do que
claro de que o instituto é uma aberração.
A subsunção das condutas proporcionais perpetradas pelo infiltrado à
figura da atipicidade conglobante é perfeita no aspecto do “cumprimento de um
dever jurídico” enquanto “um fenômeno que ocorre quando um mandado recorta uma
norma proibitiva, prevalecendo sobre ela”. [4] Nesse caso:
“A antinormatividade não se revela apenas na simples oposição entre a
norma deduzida do tipo legal e a conduta, postulando também a consideração
conglobada da norma deduzida do tipo com outras normas dedutíveis de outros
tipos legais”. [5]
Indo mais a fundo, pode-se afirmar que a catalogação de todo cumprimento
de um dever jurídico como mera causa de justificação ou excludente de culpabilidade
é uma explicação insuficiente, na medida em que não tem o poder de afastar a
própria tipicidade da conduta. De acordo com os autores em destaque:
“Como consequência de considerar o cumprimento de um dever jurídico como
causa de justificação a doutrina engendrou os casos da chamada colisão de
deveres. Essa posição parte de uma insuficiente concepção da estrutura do tipo,
que dela exclui a questão da antinormatividade, como se o tipo a consagrasse
tácita ou eufemisticamente, ou como se ela pertencesse à antijuridicidade.
Dentro do modelo que preconizamos, tomando o cumprimento do dever legal como
causa de atipicidade, e, portanto, como um problema de normatividade e não de
juridicidade, todas as colisões de deveres imagináveis são falsas ou aparentes.
No campo da realidade, dois deveres podem concretamente antagonizar-se ao ponto
de que nenhum deles estaria cumprido sem a violação do outro; mas no campo
normativo um dever sempre limita a outro ou deve ser preterido a outro. Toca ao
direito decidir qual é o dever que prevalece, resolvendo conflitos ou colisões
– tal como as normas proibitivas – através da precedência ou prevalência.
Geralmente aqueles conflitos são resolvidos em favor de um dever prevalente e a
doutrina se inclina a considerar que configuram causas de justificação, embora
no caso de bens equivalentes, particularmente se referidos à vida humana,
tenda-se a excluir apenas a culpabilidade. Esta última explicação é
insuficiente, porque não logra explicar como pode o direito consagrar como
dever jurídico a prática de um injusto, já que qualquer das duas condutas
configuraria um injusto”. [6]
E prosseguem:
“A consideração do dever jurídico como causa de atipicidade, em
decorrência de que sempre há uma norma proibitiva que prevalece e de que os
preceitos permissivos ou de justificação não são aqui pertinentes, soluciona
superiormente tais casos pela exclusão da tipicidade, por estarem diretamente excluídos
da norma proibitiva”. [7]
É visível, enfim, que somente essa solução permite que, ao menos no
campo teórico, o instituto da infiltração não se configure como uma absoluta
inviabilidade e incoerência interna do próprio sistema penal e processual penal,
sem falar no mais relevante que é a constitucionalidade. Afinal, como pode ser
admissível que, num Estado Democrático de Direito, se afirme que um agente
estatal é autorizado a atuar praticando um “injusto penal”, por mandado estatal
e legal, não sendo punido apenas porque, embora seja um criminoso, age
acobertado por uma mera excludente de culpabilidade? Então, num Estado
Democrático de Direito seria admissível que um agente estatal, e por meio dele
o próprio Estado, se convolasse num Leviatã do crime, mimetizando os
criminosos, atuando exatamente como eles e sendo isso descaradamente declarado
e admitido pela letra da lei e pela interpretação dada por seus cultores. A
admissão das ações do agente infiltrado na forma de atipicidade conglobante não
é livre de críticas sob o ponto de vista moral da atuação estatal, mas, ao
menos juridicamente, é uma explicação mais plausível ou, talvez, um véu sutil
para ocultar sua inviabilidade prática afora a poiética. [8] A reflexão final é a
seguinte: será que precisamos escolher dos males o menor? Não seria melhor nem
haver tocado nesse assunto da infiltração? Não estaria, na realidade, o mal se
infiltrando (ou inundando) na própria sociedade por meio de institutos
semelhantes? Ficam essas questões.
REFERÊNCIAS
GOMÁ, Javier. Ejemplaridad Pública. Madrid: Taurus, 2009.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Volume 1. 33ª. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012.
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Filosofia pagã
antiga. Volume 1. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Volume
II. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
Notas
[1] GOMÁ, Javier. Ejemplaridad Pública. Madrid: Taurus, 2009, p. 268 – 269.
[2] Sobre o tema específico: Cf. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito
Penal. Volume 1. 33ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 527 – 528.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro.
Volume II. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 212.
[4] Op. Cit., p. 232.
[5] Op. Cit., p. 233.
[6] Op. Cit., p. 233 – 234.
[7] Op. Cit., p. 234.
[8] A palavra “prática” é empregada aqui no sentido Aristotélico de ação
prática, como regra do agir político e ético, da “perfeição moral”. Não se
refere ao uso corrente da palavra como “prática” em oposição a “teoria”.
Aristóteles apresenta a chamada “teorética”, que consistiria na elaboração do
pensamento, na busca “do saber pelo saber”, a “prática” que consistiria na
formulação de regras do agir e, finalmente a “poiética” que seria a efetiva
atuação humana, a produção de coisas. Portanto, é muito comum, quando se usa a
palavra “prática” confundi-la com o que, na realidade seria a “poiética”, numa
popularizada oposição entre “teoria” e “prática”. Cf. REALE, Giovanni,
ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Filosofia pagã antiga. Volume 1. Trad.
Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 193.
Autor
Delegado de Polícia
em Guaratinguetá (SP). Mestre em Direito Social. Pós-graduado com
especialização em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal,
Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na
graduação e na pós-graduação da Unisal.
Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2002
ABNT):
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crime organizado: nova Lei 12.850/13 e o
problema da conduta dos agentes infiltrados no cometimento de infrações penais.
Jus Navigandi, Teresina, ano
19, n. 3867, 1 fev. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26586>.
Acesso em: 3 mar. 2014.
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