Cassação de aposentadoria é incompatível com regime previdenciário dos
servidores
16 de abril de 2015
A cassação de aposentadoria tem sido
prevista como penalidade nos Estatutos dos Servidores Públicos. Na esfera
federal, a Lei 8.112/1990, no artigo 134, determina que “será cassada a
aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver praticado, na
atividade, falta punível com a demissão”. A justificativa para a previsão de
penalidade dessa natureza decorre do fato de que o servidor público não contribuía
para fazer jus à aposentadoria. Esta era considerada como direito decorrente do
exercício do cargo, pelo qual respondia o Erário, independentemente de qualquer
contribuição do servidor. Com a instituição do regime previdenciário
contributivo, surgiu a tese de que não mais é possível a aplicação dessa
penalidade, tendo em vista que o servidor paga uma contribuição, que é
obrigatória, para garantir o direito à aposentadoria.
O regime previdenciário contributivo
para o servidor público foi previsto nas Emendas Constitucionais 3/1993 (para
servidores federais), 20/1998 (para servidores estaduais e municipais, em
caráter facultativo) e 41/2003 (para servidores de todas as esferas de governo,
em caráter obrigatório). No entanto, mesmo antes da instituição desse regime,
já havia algumas vozes que se levantavam contra esse tipo de penalidade. O
argumento mais forte era o de que a aposentadoria constituía um direito
do servidor que completasse os requisitos previstos na Constituição: era o
direito à inatividade remunerada, como decorrência do exercício do cargo por
determinado tempo de serviço público. Alegava-se que a punição era
inconstitucional, porque atingia ato jurídico perfeito.
Com esse argumento, algumas ações
foram propostas pleiteando a invalidação da punição, chegando, algumas delas,
ao conhecimento e julgamento do Supremo Tribunal Federal. A Corte não acolheu
aquele entendimento. No MS 21.948/RJ, alegava-se a inconstitucionalidade dos
incisos III e IV do artigo 127, da Lei 8.112/90, que previam as penas de
demissão e de cassação de aposentadoria ou disponibilidade, sob o argumento de
que, quando aplicada a pena de demissão, o servidor já havia completado o tempo
para aposentadoria. O argumento foi afastado, sob o fundamento de que o artigo
41, parágrafo 1º, da Constituição prevê a demissão; e que a lei prevê inclusive
a cassação de aposentadoria, aplicável ao inativo, se resultar apurado que
praticou ilícito disciplinar grave, quando em atividade. O mesmo entendimento
foi adotado no MS 22.728/PR, no qual foi afastado o argumento de que a pena de
cassação de aposentadoria é inconstitucional por violar ato jurídico perfeito.
Depois da EC 20/98, o STF proferiu
acórdão no MS 23.299/SP. O relator foi o ministro Sepúlveda Pertence, que não
enfrentou o tema diante da mudança no regime jurídico da aposentadoria e adotou
a mesma tese já aplicada aos casos precedentes. Igual decisão foi adotada no
ROMS 24.557-7/DF. No julgamento do AgR no MS 23.219-9/RS, o relator anotou que,
não obstante o caráter contributivo de que se reveste o benefício
previdenciário, o STF tem confirmado a possibilidade de aplicação da pena de
cassação de aposentadoria. O julgado baseou-se, ainda uma vez, no precedente,
relatado pelo Min. Pertence.
Mais recentemente, novo
posicionamento foi adotado em acórdão proferido pela 2ª Turma (RE 610.290/MS,
rel. min. Ricardo Lewandowski), em cuja ementa consta que: “o benefício
previdenciário instituído em favor dos dependentes de policial militar excluído
da corporação representa uma contraprestação às contribuições previdenciárias
pagas durante o período efetivamente trabalhado.” Nesse caso, alegava-se que
era inconstitucional o dispositivo de lei estadual que instituiu o benefício
previdenciário aos dependentes de policial militar excluído da corporação. A
decisão foi pela constitucionalidade do dispositivo, por se tratar de benefício
previdenciário, de caráter contributivo. Ponderou o ministro que “entender de
forma diversa seria placitar verdadeiro enriquecimento ilícito da Administração
Pública que, em um sistema contributivo de seguro, apenas receberia as
contribuições do trabalhador, sem nenhuma contraprestação”.
Note-se que o acórdão trata da
cassação da pensão dos dependentes e não da cassação de aposentadoria. O
órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão proferido no MS
2091987-98.2014.8.26.0000, entendeu, por maioria de votos, que a cassação de
aposentadoria se tornou incompatível com a instituição do regime
previdenciário. A meu ver, adotou a tese correta.
É possível reconhecer que a regra que
permite a cassação de aposentadoria gera dois tipos opostos de resistência: a)
de um lado, a repulsa pela penalidade em si, que é aplicada quando o inativo já
está com idade avançada e com grande dificuldade ou mesmo impossibilidade de
encontrar outro trabalho, seja no setor público, seja no setor privado; no
acórdão mencionado, proferido pelo Órgão Especial do TJSP, o inativo já tinha
se aposentado compulsoriamente por ter completado 70 anos de idade; b) de outro
lado, a extinção da penalidade de cassação de aposentadoria por ilícito
praticado quando o inativo ainda estava em atividade gera outro tipo de
repulsa, que é o fato de o servidor acabar não sendo punido na esfera
administrativa (ainda que possa ser punido na esfera penal e responder
civilmente pelos danos causados ao erário, inclusive em ação de improbidade
administrativa).
Há que se ponderar que, em se
tratando de pena de demissão, não há impedimento a que o servidor volte a
ocupar outro cargo público, uma vez que preencha os respectivos requisitos,
inclusive a submissão a concurso público, quando for o caso. Se assim não
fosse, a punição teria efeito permanente, o que não é possível no direito
brasileiro. E não há dúvida de que, se vier a ocupar outro cargo, emprego ou
função, o tempo de serviço ou de contribuição, no cargo anterior, será
computado para fins de aposentadoria e disponibilidade, com base no artigo 40,
parágrafo 9º, da Constituição. Mesmo que outra atividade seja prestada no setor
privado ou em regime de emprego público, esse tempo de serviço ou de
contribuição no cargo em que se deu a demissão tem que ser considerado pelo
INSS, por força da chamada contagem recíproca, prevista no artigo 201,
parágrafo 9º, da Constituição.
Façamos um paralelo com o trabalhador
filiado ao Regime Geral de Previdência Social. O que acontece quando demitido
do emprego por justa causa, por ter praticado falta grave? O trabalhador tem
dois tipos de vínculos: a) um vínculo de emprego com a empresa, regido pela
CLT; e b) um vínculo de natureza previdenciária, com o INSS. Se for demitido,
mas já tiver completado os requisitos para aposentadoria, ele poderá requerer o
benefício junto ao órgão previdenciário. Se não completou os requisitos, ele
poderá inscrever-se como autônomo e continuar a contribuir até completar o
tempo de contribuição; ou poderá iniciar outro vínculo de emprego que torne
obrigatória a sua vinculação ao regime de seguridade social; ou poderá
ingressar no serviço público, passando a contribuir para o Regime Próprio,
também em caráter obrigatório. De qualquer forma, fará jus à já referida
contagem do tempo de contribuição anterior. Para fins previdenciários, é
absolutamente irrelevante saber quantos empregos a pessoa ocupou e quais as
razões que o levaram a desvincular-se de uma empresa e vincular-se a outra. Se
for demitido, com ou sem justa causa, nada pode impedi-lo de usufruir dos
benefícios previdenciários já conquistados à época da demissão.
A mesma regra aplica-se aos
servidores públicos celetistas e temporários, que são necessariamente
vinculados ao Regime Geral, nos termos do artigo 40, parágrafo 13, da
Constituição. Se forem demitidos por justa causa, porque praticaram ilícito
administrativo, essa demissão não os fará perder os benefícios previdenciários
já conquistados ou a conquistar, mediante preenchimento do requisito de tempo
de contribuição exigido em lei. Com relação ao servidor efetivo, não é e não
pode ser diferente a conclusão, a partir do momento em que se alterou a
natureza de sua aposentadoria. Ele também passa a ter dois tipos de vínculos:
um ligado ao exercício do cargo e outro de natureza previdenciária.
Antes da instituição do Regime
Próprio do Servidor, a aposentadoria era um direito decorrente do exercício do
cargo, financiado inteiramente pelos cofres públicos, sem contribuição do
servidor, da mesma forma que outros direitos previstos na legislação
constitucional e estatutária, como a estabilidade, a remuneração, as vantagens
pecuniárias, as férias remuneradas. Note-se que a pensão, ao contrário dos outros
direito ligados ao cargo, já tinha natureza previdenciária contributiva, desde
longa data.
Ocorre que houve declarada intenção
do governo de aproximar o regime de aposentadoria do servidor público e o do
empregado do setor privado. Tanto assim que o artigo 40, parágrafo 12, da
Constituição manda aplicar ao Regime Próprio, no que couber, os “requisitos
e critérios fixados para o regime geral de previdência social”.
Sendo de caráter contributivo,
é como se o servidor estivesse “comprando” o seu direito à aposentadoria; ele
paga por ela. Daí a aproximação com o contrato de seguro. Se o servidor paga a
contribuição que o garante diante da ocorrência de riscos futuros, o
correspondente direito ao benefício previdenciário não pode ser frustrado pela
demissão. Se o governo quis equiparar o regime previdenciário do servidor
público e o do trabalhador privado, essa aproximação vem com todas as
consequências: o direito à aposentadoria, como benefício previdenciário de
natureza contributiva, desvincula-se do direito ao exercício do cargo, desde
que o servidor tenha completado os requisitos constitucionais para obtenção do
benefício.
Qualquer outra interpretação leva ao
enriquecimento ilícito do erário e fere a moralidade administrativa. Não tem
sentido instituir-se contribuição com caráter obrigatório e depois frustrar o
direito à obtenção do benefício correspondente. Assim, se a demissão não pode
ter o condão de impedir o servidor de usufruir o benefício previdenciário para
o qual contribuiu nos termos da lei (da mesma forma que ocorre com os
vinculados ao Regime Geral), por força de consequência, também não pode
subsistir a pena de cassação de aposentadoria, que substitui, para o servidor
inativo, a pena de demissão.
Não se pode invocar, para afastar
essa conclusão, o caráter solidário do regime previdenciário. Não há
dúvida de que a solidariedade é uma das características da previdência
social, quando comparada com a previdência privada. Podemos apontar as
seguintes características do seguro social e que o distinguem do seguro
privado: a) obrigatoriedade, pois protege as pessoas independentemente
de sua concordância, assegurando benefícios irrenunciáveis; b) pluralidade
das fontes de receita, tendo em vista a impossibilidade dos segurados
manterem, por si, o sistema e cobrirem todos os benefícios; daí a ideia de
solidariedade, que dá fundamento à participação de terceiros que não os
beneficiários no custeio do sistema; c) desproporção entre a contribuição e
o benefício, exatamente como decorrência da pluralidade das fontes de
receita; d) ausência de lucro, já que é organizada pelo Estado.
O fato de ser a solidariedade
uma das características do seguro social não significa que os beneficiários não
tenham direito de receber o benefício. Eu diria que a solidariedade até
reforça o direito, porque ela foi idealizada exatamente para garantir o
direito dos segurados ao benefício. De outro modo, não haveria recursos
suficientes para manter os benefícios da previdência social. A solidariedade
significa que pessoas que não vão usufruir do benefício contribuem para a
formação dos recursos necessários à manutenção do sistema de previdência
social; é o caso dos inativos e pensionistas e também dos servidores que não
possuem dependentes mas têm que contribuir necessariamente para a manutenção do
benefício; são as hipóteses em que à contribuição não corresponde qualquer
benefício. Mas para os servidores assegurados, à contribuição tem
necessariamente que corresponder um benefício, desde que preenchidos os
requisitos previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional. A
regra da solidariedade convive (e não exclui) o direito individual ao benefício
para o qual o servidor contribuiu.
A solidariedade não afasta o direito
individual dos beneficiários, já que o artigo 40 da Constituição define
critérios para cálculo dos benefícios, a saber, dos proventos de aposentadoria
e da pensão, nos parágrafos 1º, 2º e 3º. Não há dúvida de que a contribuição do
servidor, quando somada aos demais requisitos constitucionais, dá direito
ao recebimento dos benefícios.
O já transcrito argumento utilizado
pelo Min. Lewandowski com relação à pensão é inteiramente aplicável à
aposentadoria. Note-se que o caráter contributivo e retributivo do regime
previdenciário do servidor também foi ressaltado na ADI nº 2010. Para o
Relator, a “existência de estrita vinculação causal entre contribuição e
benefício põe em evidência a correção da fórmula, segundo a qual não pode haver
contribuição sem benefício”.
A relação entre benefício e
contribuição decorre de vários dispositivos da Constituição, mas consta
expressamente do artigo 40, parágrafo 3º. O que ocorre é que a legislação
estatutária não se adaptou inteiramente ao novo regime de aposentadoria e
continua a prever a pena de cassação de aposentadoria, sem levar em
consideração que ela se tornou incompatível com o regime previdenciário. Além
disso, há uma resistência grande dos entes públicos em abrir mão desse tipo de
penalidade, seja por não terem tomado consciência das consequências de
alteração do regime do servidor, seja por revelarem inconformismo com a
incompatibilidade da referida penalidade com o regime previdenciário
contributivo agora imposto a todos os servidores.
Mas o fato é que a pena de cassação
de aposentadoria deixou de existir para cada ente federativo a partir do
momento em que, por meio de lei própria, instituíram o regime previdenciário
para seus servidores. Isto não impede que o servidor responda na esfera
criminal e no âmbito da lei de improbidade administrativa e que responda pela
reparação civil dos prejuízos eventualmente causados ao erário. A cassação de
disponibilidade continua a existir, porque a disponibilidade continua a ser uma
decorrência da estabilidade do servidor, independentemente de qualquer
contribuição previdenciária.