Justiça acuada, pharmakon paliativo
A propósito da lei de proteção aos juízes
(12.694/12) de duas premissas temos que partir: (a) muitos juízes estão mesmo
correndo risco de vida, daí a necessidade de proteção policial e de medidas de
segurança, e (b) o poder destrutivo das organizações criminosas, sobretudo em
países pouco civilizados onde ainda vigora a lei do mais forte, é uma triste
realidade.
Para o populismo penal vingativo, em nome do
“bem” (da necessária proteção dos juízes), tudo seria permitido. A criminologia
crítica alternativa concorda com esse “bem” (com a edição da Lei 12.694/12), mas
diz (ao mesmo tempo) que vivemos num Estado Democrático de Direito e que a
proteção não pode suprimir direitos e garantias constitucionais e
internacionais. Para se socorrer um santo não se pode descobrir o outro. As duas
coisas devem ser compatibilizadas.
De acordo com informação do CNJ, no momento
presente (julho de 2012) 134 juízes estão ameaçados de morte no Brasil. Algumas
associações falam em maior número. O crime organizado (organizações criminosas)
seria o grande responsável pelo amedrontamento generalizado da magistratura
brasileira. Quatro juízes foram mortos nos últimos tempos (Leopoldino Marques do
Amaral, Antonio José Machado Dias, Alexandre Martins de Castro Filho e Patrícia
Acioli). Dezenas de outros juízes acham-se ameaçados.
Luigi Ferrajoli, em sua “lectio doctoralis” em
Tucuman (Argentina), no dia 27.06.12, sublinhou que “o crime organizado tem hoje
um peso financeiro e econômico sem precedentes, visto que possui caráter global
(muitas vezes) e conta, ademais, com um poder destrutivo impressionante
[destruição do ser humano, da natureza, das condições necessárias para a
vivência democrática etc.]. Estamos neste momento experimentando a mundialização
da economia e do mercado, sem a correspondente globalização da Justiça assim
como dos direitos e garantias fundamentais. A fortaleza do crime organizado
(terrorismo interno ou internacional, máfias, narcotraficantes, exploração
ilícita dos jogos etc.) ao se deparar com a fraqueza do sistema jurídico e
estatal de controle, sobretudo internacional, conduz a um cenário de regressão
social onde vigora a “lei do mais forte” (a lei do mais selvagem)”.
A lei de proteção aos juízes era necessária, mas
em torno dela já estão surgindo uma série de questionamentos: (a) violação da
publicidade quando a lei prevê “reuniões sigilosas” do órgão colegiado; (b)
violação ao princípio do juiz natural na medida em que o colegiado é constituído
depois do crime (o que lembra um tribunal de exceção); (c) violação ao princípio
da identidade física do juiz (visto que não existe previsão para os três juízes
participarem da colheita das provas); (d) esqueceu a lei da proteção dos
serventuários da Justiça etc.
O mal da edição das leis no nosso País reside no
seguinte: nada (ou pouco) se faz para combater as causas do problema. Não se
resolve o problema, sim, ilude-se a população com novas medidas simbólicas, que
podem até surtir algum efeito psicológico no princípio, mas são perniciosas a
médio e longo prazo, porque as condições materiais geradoras do problema vão se
agravando a cada dia, sem que medidas concretas para enfrentá-las sejam
tomadas.
Em muitas comarcas, tanto quanto o Estatuto da
Criança e do Adolescente, a lei de execução penal, a lei Maria da Penha etc., a
lei de proteção aos juízes não vai “pegar”, por falta absoluta de estrutura e de
recursos orçamentários. Mais uma lei placebo, um pharmakon inoperante,
que só produz efeito simbólico (mero ilusionismo). Nas raízes do problema não se
toca. A juíza Patrícia Acioli foi morta pelo crime organizado constituído de
policiais, remunerados pelo Estado. É na ferida do crime organizado que o Estado
tem que por o dedo. É preciso ir à causa.
Mas em lugar de a polícia e a Justiça
brasileiras, por intermédio de um serviço de inteligência ultramoderno,
interministerial e multiorgânico, liquidarem os bens, o capital e os ativos do
crime organizado (visto que a única maneira de acabar com as organizações
criminosas consiste em eliminar sua capacidade econômico-financeira), fazendo
uso de todos os meios legítimos de natureza fiscal, tributária, informática,
bancária etc., nosso combalido Estado neoliberal (cada vez mais raquítico em
suas tarefas institucionais e sociais: saúde, segurança, educação etc.) resolveu
editar uma nova lei (Lei 12.694/12), como sempre faz, para a proteção dos juízes
ameaçados. É o velho pharmakon aparentemente milagroso, mas muito pouco
eficiente.
De uma crítica e de um retrocesso medieval a nova
legislação se livrou: ela não criou o chamado juiz sem rosto, o que
representaria um retrocesso inaceitável. Impõe-se rapidamente desfazer o
equívoco. A lei nova não instituiu no Brasil o chamado “juiz sem rosto”, que se
caracteriza por não revelar sua identidade civil. Juiz sem rosto é o juiz cujo
nome é divulgado, cujo rosto não é conhecido, cuja formação técnica é ignorada.
Do juiz sem rosto nada se sabe, salvo que dizem que é juiz. Nada disso
foi instituído pela nova lei. Os juízes pela nova lei são conhecidos. Seus nomes
são divulgados. Só não se divulga eventual divergência entre eles.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos
refutou o juiz sem rosto peruano em 1999 e em 2000 (respectivamente nos casos
Cantoral Benavides e Castillo Petruzzi). A Corte Suprema Colombiana aboliu essa
excrescência no ano 2000. Ainda bem que o populismo penal vingativo não foi
picado por essa mosca. Mas convém que se coloquem as barbas de molho!
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da
Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e do
atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de
Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me nas redes sociais: www.professorlfg.com.br.
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